Marxismo cultural, o preconceito e a discriminação em busca de uma nova face

Paulo Gabriel Soledade Nacif 

Parcelas mais à direita da sociedade e alas conservadoras das principais religiões cristãs do Brasil assumiram o combate ao que chamam de marxismo cultural como prioridade das suas ações. Essa tendência, importada da Europa e EUA, tem hoje forte influência na formação e na ação políticas desses setores conservadores e seu alcance, possivelmente, vem sendo subestimado pela sociedade em geral.

Como buscaremos demonstrar nesse pequeno ensaio é interessante notar que aceitar a trama de um combate a uma conspiração de esquerda se harmonisa em bases profundamente coerentes com a forma como o preconceito e a discriminação se organizam historicamente no Brasil – lugar em que o racismo e outras formas de segregação se estruturaram de maneira muitas vezes velada e que tem como estratégia da perpetuação, inclusive, refutar suas existências.

Para esses representantes da direita, a queda do Muro de Berlim e o fim do Bloco Soviético apenas deslocou o foco dos inimigos que antes se localizavam além das fronteiras dos blocos ideológicos internacionais. Nessa lógica, agora há uma multipolarização de inimigos internos ainda mais perigosos, que atuam sem tréguas no campo cultural, tendo como fundamento o que chamam de marxismo cultural – uma grande conspiração de esquerda cuja ação explicaria, segundo esses ideólogos conservadores, os avanços socioculturais da sociedade contemporânea, notadamente em dimensões como direitos trabalhistas e direitos sociais de minorias como negros, mulheres, indígenas, homossexuais, imigrantes e refugiados.

Os difusores da conspiração do marxismo cultural não medem esforços e em suas performances pseudoacadêmicas não possuem nenhuma preocupação metodológica: misturam, com desfaçatez, conceitos e autores, constroem sofismas e falsos silogismos.

Para esses ideólogos conservadores o principal objetivo da conspiração de esquerda inspirada pelo marxismo cultural é destruir a família patriarcal (e toda a cultura a ela subjacente). Nessa lógica o objetivo final do marxismo cultural é a subversão dos princípios e valores da cultura judaico-cristã, pilar do mundo ocidental, com vistas a criar as condições para a vitória final do comunismo.

Essa guerra contra o marxismo cultural busca subsídios em citações truncadas de escritos do próprio Marx e de pensadores Marxistas. Tentando estabelecer uma linha do tempo lógica sobre a existência dessa conspiração, buscam-se uma confusa âncora em pensadores de esquerda, como Antônio Gramsci (1891-1937) e de autores relacionados à Escola de Frankfurt, notadamente Herbert Marcuse  (1898-1979) e Erich Fromm (1900-1980).

Essa concepção constitui-se hoje em um dos principais alicerces do discurso da direita europeia, estadunidense e brasileira. Por aqui, enquanto a esquerda, no Poder, preocupava-se em dominar os mecanismos eleitorais e o Congresso Nacional, a onda conservadora, inspirada no combate ao marxismo cultural, tomava forma em concepções como a escola sem partido, combate à ideologia de gênero e o enfrentamento ao politicamente correto.

Esse discurso tem sido repetido ad nauseam em igrejas, clubes, reuniões de associações e se multiplicam nas redes sociais. O combate a essa pretensa conspiração do marxismo cultural tem, por isso, grande capilaridade, ainda mais porque os setores mais liberais da sociedade ignora-o, subestimando o seu impacto na formação ideológica da população, tratando o assunto como exótico e extravagante e, por isso, sem importância.

Essa questão, presente no cenário político da maioria dos países, ganha, no caso brasileiro, ainda mais relevo, notadamente porque passou a ser uma ferramenta importante de combate à coalizão de centro-esquerda que permaneceu no Governo por treze anos.

Setores mais contemporâneos do campo conservador, associados por exemplo ao PSDB, DEM e PMDB, recuaram de seus posicionamentos históricos e, vislumbrando mais um caminho para o desgaste do Governo de centro-esquerda, passaram a apoiar discursos baseados no combate à conspiração do marxismo cultural. Ademais, nesse período houve um fortalecimento de líderes religiosos conservadores: Aproveitando o momento de crescimento econômico e distribuição de renda ímpar na história do Brasil, esses líderes buscaram, com algum sucesso, disputar a paternidade desse processo de inclusão, relacionando a melhoria de vida da população a uma ação divina por eles mediada.

A dinâmica social desse início do século XXI desafia os setores mais à direita a buscarem novos posicionamentos para expressar os seus preconceitos. A adoção do combate ao marxismo cultural permite estabelecer um contraponto a militantes negros, defensores de causas indígenas, feministas, homossexuais, comunidades tradicionais, multiculturalistas, educadores de direitos humanos, ambientalistas, imigrantes e refugiados, sem expressar diretamente preconceito e explicitar discriminação. Isso se encontra bem definido na assertiva do professor de ciência política Jérôme Jamin (Université de Liège): Assumir o combate ao “Marxismo cultural” é uma estratégia interessante para a direita porque, esse caminho permite a seus autores evitar discursos racistas e ao mesmo tempo fingir serem defensores da democracia. Para quem conhece a forma histórica como se organiza a bem sucedida experiência do preconceito e discriminação no Brasil entende o sucesso desses discursos baseados no combate ao marxismo cultural por aqui.

De um modo geral, a forma da esquerda lidar com esse assunto, fora e dentro do governo, sempre foi improvisada e errática. Poucos setores fazem um enfrentamento assertivo e buscam separar o respeito às crenças da necessidade do respeito à diversidade. O desafio maior é denunciar essa tentativa de construir uma nova face para expressão de preconceitos e discriminação e formas criativas de resistir aos avanços sociais ainda tão necessários ao nosso País.

 

 

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