EDUCAÇÃO: A DIVERSIDADE É A BASE

E hoje um batuque, um batuque /Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária/ Em dia de parada / E a grandeza épica de um povo em formação / Nos atrai, nos deslumbra e estimula”. Haiti, Caetano Veloso

Para o poeta, dramaturgo e ensaísta martinicano Aimé Fernand David Césaire (1913-2008) “Cultura é tudo aquilo que o homem criou para tornar a vida vivível e a morte defrontável”.

Talvez, ao fim e ao cabo, todos os argumentos que embasam os esforços das sociedades em organizar a educação e assumi-la, ao menos idealmente, como uma função social estratégica, tenha, na frase de Aimé Césaire, a sua fundamentação mais profunda. Educamos, ou deveríamos estudar, para isso: Para tornar a vida vivível e a morte defrontável.

Não é ingenuidade acreditar que a educação pode ir muito além de se constituir numa ferramenta da manutenção dos paradigmas sociais estabelecidos. Ela pode ser responsável por abrir as poucas fendas possíveis para garantir a igualdade de oportunidades nesse Brasil tão desigual e injusto.

Apesar de todos os desafios presentes no seu cotidiano, a escola brasileira sempre teve um papel extraordinário e atua de forma análoga à entrada dos buracos negros, constituindo-se, muitas vezes, naquilo que os astrônomos denominam de horizonte de eventos ou ponto de não-retorno, porta para um novo mundo no qual as nossas premissas mais profundas são desafiadas. Após essa fronteira, a força da gravidade é tão forte que, nada, nem mesmo a luz, pode escapar pois a sua velocidade é inferior à velocidade de escape do buraco negro. Tendo como referência essa analogia cosmológica, precisamos atuar de modo a ampliar cada vez mais a densidade de cada escola de modo que a sua capacidade de atração dos estudantes e da comunidade seja irresistível, transformando-a em entes estelares cada vez mais massivos.

O cotidiano não pode nos fazer esquecer de que cada estudante, cada professor, cada trabalhador da educação e cada escola indígena, do campo, da EJA, dos quilombos ou das periferias das grandes cidades, por mais invisibilizados que estejam, é, no mínimo, aquilo a que Gilberto Gil, compositor e multi-instrumentista brasileiro, se comparou: “uma planta, um capinzinho na beira da estrada que cresce ali, anônimo e que se relaciona com as forças da natureza em suas formas mais secretas, sem que ninguém se dê por isso”.

Humberto Maturana, neurobiólogo chileno, destaca que o desenvolvimento de um organismo “é um devir de mudanças estruturais contingente com as sequências de interações do organismo, que dura desde seu início até sua morte como num processo histórico, porque o presente do organismo surge em cada instante como uma transformação do processo do organismo nesse instante”. Maturana alerta que o futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem e é com base nessa compreensão que devemos considerar a educação e o educar.

Para cumprir esse papel a educação precisa se organizar em torno de conceitos que permitam que ela contribua de forma efetiva para o desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial de todos que ao longo da vida se inserem no sistema. Aqui é necessário considerar a emergência da valorização das diferenças humanas, hoje, temática incontornável para a educação, contemplando, assim, as diversidades territoriais, étnicas, sociais, culturais, intelectuais, físicas, sensoriais e de gênero dos seres humanos.

A inclusão e diversidade emergem na educação em duas dimensões complementares. De um lado há hoje um consenso de que a compreensão e o respeito à inclusão e diversidade fazem parte do conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, indispensáveis ao pleno exercício da cidadania e ao mundo do trabalho. Por outro lado há sólidas evidências de que para alcançar pleno sucesso nos seus objetivos, os sistemas educacionais devem adotar feições especiais diante de populações que diferem significativamente daquela tomada como referência para o estabelecimento dos processos de ensino. Assim nascem as modalidades de ensino, que na maioria das vezes surgiram no chão da escola, construída por professores, estudantes e familiares, fazendo valer na prática o dispositivo constitucional que, no seu artigo 206 estabelece a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e a liberdade de ensinar e de aprender. Aqui estão a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Indígena, a Educação Especial, a Educação Quilombola, a Educação do Campo, a Educação para População em Situação de Itinerância.

Somos o povo com a maior diversidade cuttural do Ocidente. Após cinco séculos de genocídios, os resultados do Censo de 2010 apontaram para 274 línguas indígenas faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes.

Lembro-me de uma Conferência do Professor Ubiratan de Castro (1948-2013), historiador brasileiro, em 2011, na UFBA, na qual ele destacou que a própria dinâmica da escravidão fez com que os cativos oriundos das mais variadas nações africanas estivessem misturados sob o controle dos mesmos algozes nas terras americanas. Na Bahia, por exemplo, desenvolveu-se uma macroidentidade de “africanos”, uma espécie de grande guarda-chuva que cobria todos os nascidos no continente africano, inaugurando assim um pan-africanismo nas Américas. Entre os povos africanos que vieram para o Brasil estão etnias como os nagôs, jejes, fantis, axantis, minas, malês, hauçás, kanuris, tapas, gruncis, fulas, fons e mandingas.

Ignorando essa diversidade, desde sempre, a ideia de uma continuidade europeia, quase linear, do Brasil, tem estado presente nos projetos das elites, como nosso destino manifesto.

Por exemplo, está na tese de Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), botânico e antropólogo alemão – que tanto influenciou nossos intelectuais, escrita em 1844: “Como se deve escrever a História do Brasil”. Lá, a noção de diversidade já está hierarquizada na proposta de analogia da formação da nação brasileira como um rio que se constituiu a partir de três afluentes: um rio enorme e caudaloso e, portanto, o mais importante, o rio dos europeu, um rio médio e tortuoso era a representação do rio dos africanos e, por fim, um rio pequenino representava o rio dos indígenas.

As nossas elites nunca souberam lidar com essa questão e, no máximo, aceitaram a presença cosmética da diversidade negra e indígena no nosso projeto de nação. Consciente ou inconscientemente, medidas foram tomadas em muitos campos para acabar com essa diversidade e fazer, mais do que hegemônica, inquestionável e única – de uma vez por todas – a nossa história europeia: na lei das terras de 1853 e na ausência de qualquer projeto de inserção socioeconômica dos negros após a abolição, na virtual ausência de reforma agrária nos momentos históricos em que esse processo ocorria em todo o mundo; num evidente projeto de redução da importância socioeconômica dos não-brancos por meio da política imigratória no início século XX; na busca por nossa homogeneização cultural por meio das imigrações campo/cidade, na segunda metade do século XX; no projeto fracassado de escola única, sob o argumento da construção de uma cultura nacional; no extermínio da juventude negra na contemporaneidade.

O potencial de conflitos no território brasileiro é sempre intenso. Quando se entende a diversidade brasileira e a ausência de um pacto mínimo de convivência entre tantos valores, percebe-se a necessidade de se ampliar a capacidade de processar conflitos nesse ambiente tão diverso como fulcro da estabilidade do ambiente sociocultural. É possível que aí esteja, talvez, parte da explicação do fenômeno do Brasil ter se transformado no campeão mundial de faculdades de Direito. Segundo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, em 2010 o Brasil tinha mais faculdades de Direito do que todos os países no mundo, juntos. Nessa época existiam 1.240 cursos para a formação de advogados em território nacional, enquanto no resto do planeta, a soma chega a 1.100. A presença maciça de advogados na nossa sociedade resulta num eficiente mecanismo de homogeneização cultural em torno das regras do Estado. Ademais, essa onipresença do Direito e das leis representam a busca por expressar uma pseudo igualdade sob os auspícios de uma visão muito particular de organização social.

Para além da diversidade construída pela nossa constituição histórica particular é necessário ainda considerar a presença na escola da diversidade intrínseca da singularidade humana e que, também, muitas vezes gera preconceito e, assim, exclusão. Aí temos, por exemplo, questões relacionadas à orientação sexual, à identidade gênero, à deficiência, aos transtornos globais do desenvolvimento e às altas habilidades/superdotação.

Desde a segunda metade do século XX, a diversidade passou a ser cada vez mais protegida por leis nacionais e acordos internacionais. Felizmente, os valores ocidentais, usados por muitos como parâmetros para a busca da eliminação da diversidade, são mais complexos do que supõem (ou desejariam) os que se opõem a um projeto de nação que respeite a diversidade.

É justamente por esses valores que é possível afirmar que essa diversidade ganhou um planalto de existência um pouco mais seguro, ao menos na dimensão legal. Nos direitos humanos, cânone da cultura ocidental, se assenta o fundamental direito à igualdade de reconhecimento e é por ele que um país como o nosso não pode eliminar essa diversidade, pelo menos, não na velocidade e com a violência que muitos gostariam. A igualdade de reconhecimento defende que a igualdade entre as pessoas somente será atingida quando grupos sociais, hoje discriminados, forem igualmente reconhecidos em sua dignidade.

Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo e professor belga, nos ensinou que cada cultura se insere no real segundo as categorias intelectuais que lhe são próprias e explora facetas da realidade humana, social e cósmica, muitas vezes ignoradas por outras. Assim, cada uma possui uma experiência singular que a humanidade perde com o seu desaparecimento. Não há como garantir que uma forma de existência sociocultural perdida não contenha ensinamentos estratégicos para a humanidade no futuro. Por isso, o direito ao reconhecimento é importante à própria cultura ameaçada mas é também estratégico para toda a humanidade.

Um exemplo interessante do avanço conceitual sobre o respeito à diversidade é o documento elaborado na Conferência Mundial sobre Educação Especial, em Salamanca, na Espanha, em 1994, com o objetivo de fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais de acordo com o movimento de inclusão social. A Declaração de Salamanca recomenda que as escolas se ajustem às necessidades dos alunos, quaisquer que sejam suas condições físicas, sociais e linguísticas, incluindo também aqueles que vivem nas ruas, os que trabalham, os nômades, as minorias étnicas, culturais e sociais. Do documento destaca-se: “O princípio fundamental da escola inclusiva é o de que todas as crianças deverão aprender juntas, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que possam ter. As escolas inclusivas devem reconhecer e responder às diversas necessidades de seus alunos, acomodando tantos estilos como ritmos diferentes de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade a todos por meio do currículo apropriado, modificações organizacionais, estratégias de ensino, uso de recursos e parcerias com a comunidade.”

A população brasileira acima de 18 anos é composta por 56% com nível médio incompleto. O analfabetismo é de 8,3%; e o analfabetismo funcional de 30%. A população brasileira que compõe o extrato dos 20% mais ricos possui uma escolaridade média de 10,73 anos, acima do índice médio da Itália e Espanha. Já a população composta pelo extrato dos 20% mais pobres possui uma escolaridade média de 5,40 anos, abaixo da escolaridade média de Honduras e El Salvador.

A diversidade integra de maneira viva as respostas estratégicas às questões que buscam desvendar os caminhos para o sucesso educacional do estudante brasileiro. É impossível desconsiderar que o desrespeito a tais princípios no passado, resultou no insucesso educativo atual.

Milton Santos (1926-2002), geógrafo e professor brasileiro,  nos ensinou que “o mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir”. Por isso, precisamos ter um projeto civilizatório. A emergência da diversidade no presente, mesmo com os retrocessos que vivemos, cria a esperança de que no futuro seja possível que ela perca a sua associação imediata a uma estrutura educacional injusta pela superação dessa última.

Isso permitirá que ressignificada e alter ego da tolerância, justiça e equidade, a diversidade adquira uma centralidade incontornável no nosso projeto de desenvolvimento sustentável, e amplie significativamente as nossas, hoje modestas, ambições civilizatórias. Não conquistaremos esse outro mundo possível sem que o sistema educacional do País se dedique conscientemente a essa construção. Não há outro caminho!, a nação com a maior diversidade sociocultural do Ocidente não pode abrir mão de ampliar a capacidade do seu povo de humanizar esse velho planeta.

Não tenhamos dúvidas: a diversidade brasileira é forte o suficiente para se impor a longo prazo e é isso que ela tem feito há cinco séculos. Os retrocessos são como ondas no oceano do tempo: no presente se comportam como tsunamis nas praias, mas nas águas  do oceano do tempo possuem dinâmica discreta frente à força e profundidade com que a diversidade brasileira se impõe.

3 thoughts on “EDUCAÇÃO: A DIVERSIDADE É A BASE

  1. Muito boa reflexão, Paulo,

    Sugiro que organize a página, para que todos os artigos não estejam automaticamente abertos. A longo prazo, tornará sua página pesada. A curto prazo, espanta o leitor, pois a barra de rolagem indica um texto absurdamente grande.

  2. Thayse Lacerda Assis

    O texto incita à reflexão para que possamos viver, tendo como lampejo de esperança o caminho da educação/estudo, considerando, fundamentalmente, a riqueza da diversidade constitutiva do povo brasileiro. E considerar a importância desse viés, étnico, racial,de gênero… é, a meu ver, um importante passo para atuar em nossas escolas, e para além delas, como educadores de atuam de forma inclusiva. Infelizmente, sinto falta dessas discussões, atreladas às nossas práticas em salas de aula. Falta formação em nossos próprios ambientes escolares, desses elementos que são caros a uma educação que se pretende na perspectiva emancipadora…

  3. Muito bom texto, Paulo. Dialoga com uma reflexão que tenho feito ao trabalhar no PIBID de Pedadogia que propõe a diversidade como estratégia docente. Consideramos que o fato da escola ser espaço humano, a diversidade é inerente a ela. A provocação aos discentes de Pedagogia é construir uma pratica pedagógica pautada pelo princípio de que não posso planejar minha intervenção sem considerar especificidades culturais, cognitivas, geográficas… Ou seja, considerar a floresta e a árvore.
    Abraço

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *