Paulo Gabriel Soledade Nacif
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. ” (Trecho do Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928).
O personagem foi inspirado em São Nicolau, arcebispo de Mira na Turquia, no século IV, mas foi somente em 1931, por meio de uma campanha publicitária da Coca-Cola, que o Papai Noel ganhou o aspecto mais próximo do que conhecemos.
É incrível constatar que em 1932, já no ano seguinte à campanha da Coca-Cola, um baiano de Teodoro Sampaio enfrenta o mito de Papai Noel produzindo uma pérola preciosa, única e inesquecível – “Boas Festas”. A música estrutura o poema ou é o texto que inspira a música?
Essa música do meu conterrâneo Assis Valente salva o meu Natal. Sempre sinto muito orgulho quando vejo que o Natal brasileiro, apesar do Bom Velhinho com todo o seu excesso de roupas, todo o seu consumismo, suas frases feitas, sua neve e seus pinheiros, floridos de hipocrisias, foi “antropofagado” – digerido pela genialidade de Assis Valente, baiano lá de Bom Jardim (antigo nome de Teodoro Sampaio), nas cabeceiras do Recôncavo, à época um distrito de Santo Amaro. É isso: acontece que eu sou baiano… Assis Valente engoliu, regurgitou e novamente remastigou o colonizador.
“Boas Festas” é uma música tipicamente brasileira, cheia de ironias e desafios escondidos numa falsa ingenuidade.
Veja que gênio!
Ele começa candidamente, mas eufórico, feliz:
“Anoiteceu
E o sino gemeu
E a gente ficou
Feliz a rezar”.
Rapidamente, ele aproveita o momento de submissão e candura e faz o seu pedido:
“Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar”.
Como nunca recebe o presente, Assis Valente entra com toda a ironia de quem conhece todos os sotaques da tristeza:
“Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem.”
Tudo isso numa música linda, cheia de ritmo, lirismo, tensões e antagonismos que penetra e embala o Natal de norte a sul ou, como diz John Lennon: Todo o natal – do enfermo e do são, do rico e do pobre, do branco e do negro, do amarelo e vermelho.
A música “Boas Festas” é uma ópera, uma peça de teatro, um livro, um filme e também uma série para uma dessas plataformas da era digital. Faz a gente imaginar mil pessoas, idosas, adultas, jovens e crianças tristes que aguardam pela visita de um Papai Noel que nunca chega. É um pouco a história de vidas como as nossas, nada heroicas, comuns, com frustrações no passado e à espera das que surgirão nas esquinas e becos por onde vamos caminhar. Felicidade é brinquedo que não tem!
Como o mundo é cheio de contradições, o conjunto “As Melindrosas” (1978), Simone (1995), Gaby Amarantos (2013) e até Milton Nascimento (2015) fazem o movimento inverso do pretendido por Assis Valente e não se envergonham de defender o Papai Noel da Coca-Cola: Transformam essa obra-prima numa monótona batida de carnaval, eliminando toda a complexidade da criação. Antropofagia reversa?
Assis Valente, depois de viver em Alagoinhas, Senhor do Bonfim e Salvador, mudou-se com 17 anos para o Rio de Janeiro. Lá foi protético, teve seus desenhos publicados em revistas, escreveu peças de teatro, mas foi como compositor que alcançou grande sucesso nas vozes de ícones como Carmem Miranda, Dorival Caymmi, Orlando Silva e Herivelton Martins.
A sua música “Brasil Pandeiro” dialoga à perfeição com “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Para essa gente bronzeada mostrar seu valor é necessário abrir a cortina do passado, tirar a mãe preta do cerrado. E botar o rei congo no congado.
Ele também compôs “Meu Moreno Fez Bobagem” e “Camisa Listrada”. Ainda hoje há imbecis para estranhar como Chico Buarque escreve letras de algumas músicas tão femininas, então, imagine como era na década de 1940 um compositor que escreveu: “Meu moreno fez bobagem / Maltratou meu pobre coração / Aproveitou a minha ausência / E botou mulher sambando no meu barracão / Quando eu penso que outra mulher / Requebrou pra meu moreno ver / Nem dá jeito de cantar /Dá vontade de chorar/ E de morrer”.
Enfrentando preconceito de cor, possivelmente tendo que explicar a sua orientação sexual, sempre com dificuldades de recolher os seus direitos autorais que hoje o transformariam num milionário e lidando com vícios como a cocaína, não é por acaso que Assis Valente é autor de expressões ainda populares no Brasil, como por exemplo nos versos: “Deixa estar jacaré/ Que o verão vai chegar/ Quero ver se a lagoa secar.”
A criatividade genial desse baiano o fez também um dos precursores das marchinhas juninas e já em 1933 ele compôs a música “Cai, cai, balão”, sempre com ironias tristes: “Eu também sou um balão / Vou subindo de mentira / No azul da ilusão / Meu amor foi a fogueira / Que bem cedo se apagou / Hoje vivo de saudade / É a cinza que ficou!”
Esse gênio da raça morreu no dia 06 de março de 1958, aos 47 anos. Num bilhete, deixou o último “verso”: “Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo. ”
É, Papai Noel: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Boa noite Professor Paulo.
Obrigado por compartilhar esta história que era de total desconhecimento para mim.
Que Deus continue abençoando, iluminando e protegendo o senhor e sua família.
Boas Festas e Feliz Ano Novo!