RECÔNCAVO ABSOLUTO: SUA MAGIA, SEUS LICORES

“O melhor o tempo esconde
Longe, muito longe
Mas bem dentro aqui…”

Trilhos Urbanos – Caetano Veloso

Cheguei no Recôncavo com dez meses de idade. Era fevereiro de 1965. Meus pais separaram-se logo após o meu nascimento e a minha mãe, com dois filhos pequenos, mudou-se para Teodoro Sampaio, onde existia a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, instituição em que ela trabalhava.

O nome da cidade é uma homenagem àquele que foi o engenheiro mais famoso do final do império e do início do século XX e que nasceu ali. À época o povoado denominava-se Bom Jardim e pertencia a Santo Amaro. Era constante a citação de Teodoro Sampaio (1855-1937) como filho ilustre daquela cidade e, naquele lugar de negros, para nós, crianças, era meio non sense quando destacavam que ele era negro, afinal, por que não seria? Soou estranho quando alguém contou que em 1879, os membros do Gabinete de um Ministro recusaram-se a publicar o nome de Teodoro Sampaio como integrante da Comissão Hidráulica do Império, para não humilhar os outros engenheiros, brancos. Seu nome foi publicado em separado numa edição posterior. É possível que essa tenha sido a primeira aula sobre as dificuldades que teríamos na vida, mas tudo era muito novo no mundo para nos preocuparmos com isso.

Teodoro Sampaio, com cerca de sete mil habitantes, nas cabeceiras do Recôncavo, localiza-se entre três polos que exercem forte influência sobre esse município: a sudeste fica Salvador (96 km, com 2,9 milhões de habitantes), a oeste temos Feira de Santana (46 km, 600 mil habitantes) e a nordeste temos Alagoinhas (35 km, 100 mil habitantes). Esses três polos de diferentes grandezas, exercem forças atrativas irresistíveis para um pequeno município, notadamente quando sabemos que o Brasil sempre careceu de políticas de fortalecimento dessas comunidades.

Essa proximidade a centros maiores se traduziu no seu esvaziamento permanente. Sem potência para resistir à atração desses grandes centros do seu entorno, Teodoro é como um núcleo submetido a forças inerciais que dele tudo retira.  Ou, quase tudo! Ontem, hoje e amanhã, onde há seres humanos, o mundo será reinterpretado e, assim, reinventado. Permanentemente. Histórias são criadas sobre a dor, a chuva, o desejo, o solo, o choro, as estrelas, a alegria, os ventos. Tecnologias são geradas para a comida, a casa e a cura. A arte é inventada para nos salvar da vida. Deuses são criados para nos livrar da morte!

Quando há gente convivendo, um cantinho qualquer esquecido do mundo interage com as forças cósmicas sem que ninguém precise descobri-lo para que isso seja sempre extraordinário. Enquanto houver dia, noite, sol, chuva e convivência, as virtualidades humanas e as suas experiências singulares serão infinitas. A invenção permanente da vida, a partir de cada realidade humana, social e cósmica é a magia mais admirável do mundo.

E o Recôncavo caprichou em magia: Teodoro desenvolveu-se como uma Macondo de Garcia Marquez, realisticamente fantástica. Lá cresci, com direito a circos, ciganos, histórias, deuses – e tudo mais que as pessoas inventam quando são esquecidas do resto do mundo, seja na Nova Guiné, numa Planície do Rio Danúbio, no Saara, no Curuzu, no Harlen, ou num cantinho perdido do Recôncavo da Bahia.

O Recôncavo é o nordeste molhado pelo mar, pelas chuvas e pelos rios. Integra os domínios da imponente Mata Atlântica, não obstante ela seja tão rara de ser encontrada – transformada em cinzas para liberar áreas para a agropecuária, em lenha para os engenhos de açúcar, em madeira para barcos e para tantos outros usos. O desmatamento aqui foi tão rápido e intenso que nos meados do século XVII o Recôncavo já importava lenha do sul da Bahia.

Gilberto Freyre, no livro “Nordeste”, integra o Recôncavo a um conjunto de territórios da região que é diferente daquele seco, dos sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés: “O Nordeste do massapê, da argila, do húmus gorduroso é o que pode haver de mais diferente do outro, de terra dura, de areia seca. A terra aqui é pegajenta e melada. Agarra-se aos homens com modos de garanhona[…] A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo nordeste e no Recôncavo se explica por condições favoráveis de solo, de atmosfera, de situação geográfica. ”

É bastante conhecida a emergência do complexo canavieiro nas áreas baixas do centro-norte do Recôncavo (nos solos localmente denominados massapês), associado, no Sul e ao norte de Salvador, à produção de gêneros alimentícios, madeiras e fumo. Nesse processo, os colonizadores portugueses dizimaram dezenas de aldeias tupinambás e fizeram do Recôncavo um dos principais destinos da diáspora africana. O Recôncavo sempre será, para todo o Brasil, uma referência para estudos de áreas como geologia, oceanografia, pedologia, economia, sociologia, antropologia, literatura, música, artes plásticas e religiosidade.

Como é próprio de cidades como Teodoro Sampaio e outras do Recôncavo, tínhamos o nosso Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos, que passava com frequência por lá, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Lá também havia um mistério que nunca se esclareceu, como foi a morte de José Arcadio, em Macondo. Da mesma forma que havia época de trovoada, época de pipa e o tempo de tanajura, também havia o tempo dos mistérios. A cada estação uma nova história assombrava os moradores daquele lugar. Às vezes uma história vinha acompanhada de conselhos para evitar tragédias e então muitos preferiam seguir as penitências estabelecidas por seus feiticeiros (padres, pastores, mães de santo, médiuns, rezadores e parteiras) para evitar que se cumprissem as sentenças catastróficas anunciadas nas histórias. As penitências poderiam ser uma pedra preta debaixo do pote, a ida a uma missa, uma oração especial, encomenda a um pai de santo ou uma reza de folha.

No Recôncavo e particularmente em Teodoro, vicejam assombrações em todos cantos. Gilberto Freyre, que escreveu um livro sobre o assunto (Assombrações do Recife Velho) se encantaria com esses nossos fantasmas. As nossas histórias são tão incríveis quanto as assombrações da Veneza Pernambucana. A intensidade da integração entre vivos e mortos é quase completa. Só não era mais crível por conta do desespero das pessoas diante da morte de alguém próximo: Afinal, se no dia a dia todos, mortos e vivos, vivíamos imbricados, porque chorar tão atlanticamente a partida de uma pessoa querida?

Minha mania de ordenamento me levou a agregar as assombrações do Recôncavo em três grupos: ambientais, personificadas e animais. As assombrações ambientais são aquelas que aparecem em espaços mal-assombrados: O mercado que já foi um cemitério, uma casa onde alguém morreu em circunstâncias especialíssimas, um prédio abandonado, uma lagoa encantada, o trecho de uma estrada onde houve um acidente ou uma emboscada; as assombrações personificadas são aquelas almas que possuem CPF mesmo no além: Um noivo que morreu no dia do casamento; o cavaleiro da meia-noite,  a mulher de fora que morreu e procura o caminho de volta para Salvador, a procissão das almas, o homem do saco; Temos também as assombrações animais, como a caipora, o boitatá e o curupira. E, num grupo à parte, temos ainda as assombrações que são interfaces daquelas categorias – e aqui o mais famoso é o lobisomem.

O Recôncavo é um território do realismo mágico e que encontrou uma tradução à altura em João Ubaldo Ribeiro, cujo testemunho, presente em “Viva o Povo Brasileiro”, invoco para provar que não estou a mentir. Por isso, não tenho dúvidas sobre a existência de uma ligação subterrânea entre Teodoro Sampaio e Aracataca na Colômbia, por meio de uma gruta onde se encontram os moradores de Macondo e do Recôncavo que desencarnaram e que ficam ali, conversando e preparando novas histórias para quando ressuscitarem. É nessa gruta que Gabriel Garcia Marquez e João Ubaldo Ribeiro se esconderam quando cansaram da vida entre nós.

Minha mãe integrou, desde a década de 1950, as primeiras gerações dos “agentes sociais de saúde” (visitadoras sanitárias) do Brasil como servidora da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, serviço pioneiro no País em assistência, que empregava o trabalho de pessoal auxiliar para o atendimento de grupos como gestantes e crianças, e no controle de doenças transmissíveis. Na FSESP, as visitadoras sanitárias assistiam regularmente nos domicílios às mães e seus filhos recém-nascidos, estando sob sua tutela uma área geográfica e populacional.

O papel que minha mãe desempenhava nessa pequena cidade, que tinha apenas um médico (que também servia a outros municípios), era a chave para que eu fosse conhecido e querido em todo aquele lugar. Eu corria aqueles Recôncavos em todas as direções, nos seus massapês, areias e outras terras movediças, altos e baixos, mandiocais, canaviais, plantios de fumo, pastos e quintais, relacionando-me intensamente com aqueles que, depois, a academia chamaria de mestres de saberes populares, sambadeiras, sambadeiros, pais e mães de santo, bordadeiras, artesãos, cozinheiras, rezadeiras, capoeiristas, contadores de histórias.

Foi assim que tive acesso, por exemplo, às minhas primeiras aulas sobre o Recôncavo. Lembro-me dos trabalhadores de cana voltando para a cidade na entressafra e contando histórias dos baixios do Recôncavo: “Lá em baixo, em Salvador, tem é coisa…”. Sempre me impressionou aquela que, depois descobri, foi a minha primeira aula de geografia, quando um trabalhador me disse: “Eu saio daqui das ‘cabiceira’ do Recôncavo e vou descendo, cortando cana e só paro lá embaixo quando o rio Subaé vira mar”. Causa-me espanto ainda hoje pensar que um trabalhador rural, naquela época, tinha uma ideia tão precisa do Recôncavo – um anfiteatro voltado para a Baía de Todos os Santos, que toma o lugar do palco.

Minha mãe voltou a se casar, com Everaldo, famoso fabricante de licores do Recôncavo e servidor público dos Correios em Santo Amaro da Purificação, município próximo de Teodoro Sampaio. Caetano Veloso canta com precisão em “Jenipapo Absoluto”, sobre a importância do fabrico de licor na vida de algumas famílias do Recôncavo – terra tão propagada pelo sol de fevereiro, mas pouco lembrado pelo seu junho tão frio:

“Como será pois se ardiam fogueiras
Com olhos de areia quem viu
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é jenipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel.”

Everaldo tinha um pouco de José Arcadio, patriarca da família Buendía, “cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia”. Assim, estava sempre em busca de novidades para divertir a família e ter histórias para contar para os amigos. Uma brincadeira, uma história, um brinquedo na feira, um instrumento musical.  Sempre havia uma novidade!

O papel do meu padrasto nos Correios de Santo Amaro e suas profundas relações com aquela comunidade, por exemplo, me permitiram frequentar a casa de Dona Canô antes do mito ser criado. Algumas vezes acompanhei Everaldo ao trabalho em Santo Amaro e em visitas à casa dos Veloso. A proximidade com aquele mundo me fazia ter uma clara preferência pela mãe em relação aos seus filhos, já famosos. Interessante: lembro-me claramente de uma moça que trabalhou na nossa casa lamentando: “Dona Canô é muito legal. Já pensou se Dona Canô fosse mãe de Wanderlei Cardoso, Paulo Sergio ou Jerry Adriani e não desse Caetano Veloso?”. Sim, porque o Recôncavo além do samba de roda, sempre adorou músicas que depois passaram a integrar o que chamam de brega. Talvez por isso, depois que me afinei com a Tropicália, tenha passado a gostar tanto de ouvir Caetano Veloso cantando Fernando Mendes (Você não me ensinou a te esquecer) ou Odair José (Eu vou tirar você deste lugar) e Maria Bethânia a cantar Dalva de Oliveira (Calúnia) ou Carmen Costa (Eu sou a outra). Recôncavo Absoluto.

Aquele mundo me deu régua e compasso para questões fundamentais como a segurança necessária para não ter medo do Recôncavo que eu reencontraria no futuro. Nos anos da reitoria da UFRB, algumas vezes tive de ouvir, sem alterar o semblante (faz parte da liturgia do cargo), de professores e estudantes vindos das mais diversas partes do mundo, me dando aula sobre essa região e quase falando: “É lamentável que a UFRB tenha um reitor que não conhece o povo do recôncavo e não faz ideia do que é pisar no massapê nem da ancestralidade que tudo isso carrega”.

O trabalho de Everaldo nos Correios também foi relevante para um privilégio raro no interior. À época, alguns materiais dos Correios eram descartados por desvios extremos de endereços e, por isso, alguns livros, que nunca chegaram aos olhos a que estavam originalmente destinados, acabaram na nossa casa, o que nos permitia a convivência com livros numa terra sem bibliotecas e livrarias. Livros de química, filosofia, história, receitas de comidas e romances eram comuns na minha casa.

Aquela profusão de livros e o acesso desordenado a eles me deixaram marcas até hoje. Desenvolvi um interesse enciclopédico pelos mais diversos assuntos, não obstante, desde aquela época, soubesse que nem sempre teria capacidade de aprofundar os detalhes de todas as matérias.

Nossa família se tornou tão intensamente do Recôncavo que quando li “Viva o Povo Brasileiro” entendi como era vã a esperança que um dia eu tive de não ter um encontro cara a cara com a morte. Como ensina João Ubaldo: “De mortes bonitas é farta a memória do Recôncavo, tantos os santos homens que se defrontaram de maneira edificante com a gadanha da Grande Ceifadeira, assim legando às gerações subseqüentes exemplos inesquecíveis do bem morrer. Não há mesmo família ilustre que não se compraza em relembrar as diversas mortes belas que cada uma conta em seu acervo tanatológico, seja pelas derradeiras palavras exaladas, seja pelo manto de doçura e paz a envolver o preciso momento do trespasse, seja pelo estoicismo do moribundo, seja pela venusta paisagem ou especialíssimas circunstâncias a cercar os óbitos repentinos, seja pela comoção do povo nas exéquias – tudo isto fazendo com que nestas questões letais, não exista no mundo lugar tão ufano.”

Em 2022 meu padrasto, Everaldo, completaria cem anos, mas ele nos deixou bem antes, levando com ele parte daquele mundo mágico que para mim era completamente real. Repentinamente, em 21 de junho de 1975, chegou a hora de começar a organizar o meu acervo tanatológico e o meu imbricamento mais íntimo com o mundo dos mortos.

Durante todo o ano havia a fabricação de licor na nossa residência, mas a partir do final de abril a casa se tornava uma verdadeira fábrica de licores. O tempo todo chegavam carregamentos de umbu, maracujá, limão, cajá, laranja e, principalmente, jenipapo. Tudo era ocupado por bacias, baldes, funis, cachaça, álcool, sacas de açúcar, muito algodão (que serviam de filtro), ajudantes, e, muita paciência. As encomendas eram imensas e no final de maio começavam as entregas principalmente em Santo Amaro, Cachoeira, São Felix, Cruz das Almas, Feira de Santana, Alagoinhas, Terra Nova, Candeias, Camaçari e Salvador. Sempre que possível eu estava com ele. Everaldo contratava kombis para a entrega e também usava o nosso fusca (Placa CQ0079) nesse trabalho. Foi nele, num sábado chuvoso, na véspera de São João, na BR-324, perto de Feira de Santana, que ele partiu, após um acidente, para servir seus licores no céu.

Lembro que no velório um grupo conversava animadamente sobre o acidente, e eu, lógico, tentando entender tudo aquilo, me coloquei de modo a ouvir a conversa que girava em torno das causas do sinistro:  Afinal, como Everaldo poderia ter capotado, sozinho, naquela reta? Alguém, então, deu o veredito, inquestionável e supremo, com uma certeza típica do povo do Recôncavo: “rapaz, onde já se viu ficar dirigindo meio-dia? É a hora que Cristo morreu e o diabo pensa que dominou o mundo, não se deve dirigir na hora do almoço: essa é hora da guerra do céu e do inferno. Ou você pensa que foi fácil pra Deus ressuscitar Jesus? ”.

Continuamos em Teodoro até 1977. Minha mãe resolveu retornar ao sul da Bahia. O Jenipapo já não era absoluto!

“Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver do que sonhar
É ter o coração daquilo.”

Acima: Teodoro Sampaio (1855-1937), (Folha de S. Paulo. anos 1930).

– Este é o segundo texto da série HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO. Para entender esse projeto, leia aqui: http://paulonacif.com.br/2022/01/03/historias-da-ufrb-e-do-reconcavo/

 

4 thoughts on “RECÔNCAVO ABSOLUTO: SUA MAGIA, SEUS LICORES

  1. Luiz Alberto Silva dos Santos

    Perfeito Professor Paulo Nacif, só faltou se referir a Maragojipe que consume todos os licores e comidas do reconcavo, com exceção da “Maniçoba “.
    Produz a melhor farinha de mandioca, prepara a melhor carne de fumeiro e faz a melhor muqueca.
    Ah!!!, e tem a melhor filarmônica do mundo, a Terpsicore Popular.
    Mas essas lembranças ficará para a próxima prosa que sei você nos brindará.
    Parabéns Professor!!!

  2. Ah, moço… só alguém cuja alma se molda pelo massapê dessas terras pode escrever uma crônica assim. O Recôncavo é nossa Macondo também porque, no seu povo, sempre esteve a sabedoria negra da nossa ancestral experiência.

  3. Seu Zeca, pai de Caetano, também trabalhou nos Correios de Santo Amaro .

  4. Ótimo texto. Professor, senti falta de uma nota de pesar sua ou da ufrb sobre a partida de Alaíde do feijão, mulher, negra, personagem importante da nossa Bahia.

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