VOLTA ÀS AULAS: A FELICIDADE GUERREIRA

Paulo Gabriel Soledade Nacif

 

Quem não se cansa de ler “Cem Anos de Solidão” sabe bem o tamanho da felicidade que a volta de Úrsula causa em José Arcadio Buendía: “’Era isto!’, gritava. ‘Eu sabia que ia acontecer.’ E acreditava mesmo nisto, porque nas suas concentrações, enquanto manipulava a matéria, rogava do fundo do seu coração que o prodígio esperado não fosse a descoberta da pedra filosofal, nem a liberação do sopro que faz viverem os metais, nem a faculdade de transformar em ouro as dobradiças e fechaduras da casa, mas o que agora tinha acontecido: a volta de Úrsula.”

É isso!, a volta às aulas, notadamente num Estado como a Bahia e, ainda mais, nesse momento de novo normal pós-pandemia, deve causar esse tsunami de felicidade guerreira em toda comunidade escolar e também em todos os baianos.

A escola é a maior tecnologia inventada pela humanidade. É incrível como ela se constitui a partir de uma comunidade imediata e, a partir desse nó, completa a sua existência numa rede de elementos interativos constituídos pelas dimensões material, social e política. Sem considerar essa dinâmica da rede, definida por atores, instituições, mensagens, crenças e valores que a frequenta e apesar da concretude com que um prédio escolar se impõe aos nossos sentidos, não é possível apreender essa escola em sua completa existência. E, sem isso, não enfrentaremos nossos desafios!

É risível qualquer argumento que defende que a Escola pode ser substituída pelo homescholing ou será ultrapassado por processos associados à Educação à Distância. E se você não concorda comigo, e, mais que isso, não sente esse regozijo com o início das aulas, sinto muito: Você precisa revisar os seus conceitos ou aquecer o seu coração.

Sim, há inúmeros desafios que a Escola Baiana precisa enfrentar. Temos 98,2% das nossas crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos matriculados no ensino fundamental, mas só 64,5% concluem essa etapa até completarem 16 anos. No ensino médio, 58,6% dos nossos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados e somente 50,2% concluíram essa etapa ao completarem 19 anos. A proficiência dos alunos do 2o ano do Ensino Fundamental em Matemática e Língua Portuguesa expressa grandes desafios do sistema educacional baiano: Apenas 9,7% dos alunos atingem os dois níveis mais altos, em Matemática, e 8,4%, em Língua Portuguesa.

A Bahia manteve ao longo da sua história uma difícil relação com a educação. O Estado teve a escravidão como mola propulsora do seu desenvolvimento econômico, levando esse processo a estágios superiores a outros territórios no que diz respeito à nossa organização social. Como resultado dessa ignomínia não conseguimos estruturar um pacto para superar esses desafios que, ao fim e ao cabo, ainda persistem retroalimentados por essa herança escravocrata.

Números como esses expressam uma sociedade profundamente desigual no presente e, lamentavelmente, a persistência futura, por décadas, dessa desigualdade perversa. Essa é uma verdade dura e para mudar esse curso será necessário construirmos um processo extraordinário que conduza a uma disruptura sociocultural monumental e virtuosa. É lógico que isso só ocorrerá por processos associados a toda sociedade baiana, mas cabe destacar que a escola é um lócus incontornável para a construção dessa mudança.

O início das aulas é um ótimo momento para refletirmos profundamente sobre a construção desse processo disruptivo a partir da escola. Humberto Maturana (1928-2021) me inspira muito a imaginar a volta às aulas  como um período que deve ser usado para pensar o quanto podemos e devemos valorizar na escola o momento do recomeço: A célula inicial que funda um organismo estrutura uma dinâmica histórica que resulta em um devir de mudanças estruturais contingente com a sequência de interações do organismo, que dura desde seu início até́ sua morte e, assim, o presente do organismo surge em cada instante como uma transformação do presente do organismo nesse instante. O futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem. É com base nessa compreensão que devemos considerar a educação e o educar.

Considero que a volta às aulas deve ser comemorada como a chegada do Ano-Novo. Fogos, contagem regressiva na TV, discursos do Presidente, Governador, Prefeito, roupa nova, amigo secreto, banhos de mar e rio, promessas e, acima de tudo, um grande esforço para cumpri-las. Fico sonhando com a instituição do Dia Nacional de Volta às Aulas: Um dia em que todo o Estado/País deve parar para refletir no trabalho, em casa, nas escolas, no trabalho, nos quilombos, no campo, nos territórios indígenas, na periferia, nas praças, nos shoppings, nas redes sociais, nas mídias tradicionais, nas igrejas, em cada canto, sobre o papel da Educação e da Escola e assim se preparar para aproveitar essa dádiva que está na nossa Constituição, o direito ao pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Que promessa você fará nesse Ano-Novo Escolar?

“…Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motimEm cada intervalo da guerra sem fimEu canto, eu canto, eu cantoEu canto, eu canto, eu canto assim
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira…”
Zumbi, Gilberto Gil

 

6 thoughts on “VOLTA ÀS AULAS: A FELICIDADE GUERREIRA

  1. Maravilhoso texto revelador da emoção de educador comprometido com a vida plena e a substantividade do sentido da educação, da escola na busca da construção coletiva de uma sociedade justa e feliz.
    Parabéns Paulo e gratidão pela inspiração que nos oferece.

  2. Prof. Paulo Nacif, seu texto nos reencanta. Todos os jovens, não importa se jovens há mais tempo ou menos tempo, como diria meu pai, buscam novos tempos e horizontes. A escola pública, gratuita e laica é de fato é maior tecnologia inventada. Saudações anisianas. Prof Sandra Santos

  3. Reflexoes profundas e estimuladora para revivicacao da escola enquanto núcleo irradiador de saberes, de acolhimento e de humanidade! Emocionante, Prof Paulo! Parabéns pela iniciativa! Vamos batalhar pelo Dia Nacional de Volta as Aulas!!!

  4. Prof. Paulo Nacif

    Seu texto nós faz refletir o quanto precisamos construir na educação,e desenvolver ações interativas que venha amenizar está desigualdades educacionais.

  5. Obrigado mais uma vez por dividir com o mundo suas ideias. Como dizem, a vida sem arte é insuportável, e talvez sem prosa ou verso não possamos seguir sorrindo. Continuar a estudar e viver universidade como escolhi, depois de tanto que vivemos na UFRB, não pode ser possível sem esse ar poético. abraço PG

  6. Thayse Lacerda Assis

    Extremamente pertinente a reflexão sobre o recomeço das aulas! Para alguns, como eu que estou em sala de aula, traz a dimensão do que deveria ser esse momento de recomeço, inclusive de valorização do profissionais da educação que estão nas escolas, resistindo, mesmo em condições adversas, para fazer um trabalho digno. Não fosse o Sistema S ocupando cada vez mais a gestão das escolas públicas, por enquanto com formações, estaríamos bem felizes em produzir nossas próprias histórias na direção do reconhecimento e valorização das instituições públicas e potências das juventudes que ali se nutrem.

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