Paulo Gabriel Soledade Nacif
O ano de 2022 marca o bicentenário da independência do Brasil e é certo que esse marco, principalmente para os baianos – mas não só para eles, se estende e tem o seu ápice em 02 de julho de 2023, data do bicentenário da expulsão das forças portuguesas da Bahia, último bastião dos colonizadores. É consenso que sem essa ação dos baianos, notadamente do Recôncavo, o Brasil tenderia a se desintegrar em vários países, como ocorreu com a América Espanhola. É, portanto, um absurdo que o senhor Michel Temer tenha expedido, em 06 de setembro de 2016, um decreto que Institui a “Comissão Interministerial Brasil 200 Anos” para organizar o bicentenário da independência do Brasil e colocado como data para o encerramento dos trabalhos dessa comissão 01 de março de 2023, demonstrando descaso ou desconhecimento com a história do povo brasileiro.
Essa ação do Governo Federal não pode passar despercebida pelo povo do Recôncavo e da Bahia. Até o momento não vimos nenhuma ação das instituições e movimentos sociais contra esse ato que simbolicamente nos exclui das comemorações oficiais da independência do Brasil – ao menos naquilo que é mais caro para nós.
Começo esse texto com esse fato, porque me parece que isso retrata bem o momento em que a UFRB, maior conquista do povo do Recôncavo nesse século, completa treze anos ( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11151.htm ). Um momento em que estamos nos movimentando timidamente frente ao golpe e seus múltiplos desdobramentos.
Recentemente participei, em Santo Antônio de Jesus, de um grande ato político com as principais lideranças políticas da Bahia e do Recôncavo e me chamou a atenção o fato de que a UFRB não foi citada uma única vez pelas principais forças políticas presentes – justamente aquelas que estiveram ao nosso lado na conquista e consolidação da universidade. É certo que vivemos um momento em que os políticos se colocam distantes dos debates culturais e preferem uma excessiva ênfase na infraestrutura física, mas será que só isso explica esse silêncio?
No dia 25 de junho de 1822, reunidos na Câmara Municipal de Cachoeira, lideranças do Recôncavo anunciam o resultado da consulta feita ao povo: se concordava que se proclamasse dom Pedro de Alcântara regente constitucional e defensor perpétuo do Brasil. Mesmo sob ameaça da armada portuguesa, fundeada no Rio Paraguaçu, a resposta foi “Sim!”. Por esse ato Cachoeira recebeu o Título de “Cidade Heroica”, por meio da Lei Provincial no. 43 de 13 de março de 1837. Por uma ação do Governador Jaques Wagner e por grande esforço do historiador Ubiratan Castro e da Senadora Lídice da Mata, está prevista na Lei 10.695/07, que em 25 de junho a sede do governo da Bahia seja transferida para Cachoeira, por 24 horas. Durante seus primeiros anos essa data passou a ser ponto de confluência das forças culturais e políticas de toda a Bahia e do Brasil. Hoje, 25 de junho em Cachoeira está voltando a ser uma data quase municipal.
Esses exemplos estão aqui porque por tudo que somos e pelo tamanho que atingimos precisamos nos colocar em posição central nessa discussão. Não podemos nos abster de liderar institucionalmente os grandes debates sobre o Recôncavo sob pena de respondermos historicamente por essa omissão.
Como silenciar sobre a paralisação do Estaleiro de Maragogipe? Qual a nossa posição sobre a Ponte Salvador-Itaparica e a duplicação da rodovia Bom Despacho/Santo Antônio de Jesus? Desejamos a federalização do hospital regional de SAJ? Quais os impactos da reforma da educação básica e da BNCC nas nossas escolas? Como está o “currículo Recôncavo” nessas escolas? Qual o nosso papel na salvaguarda do patrimônio material e imaterial do Recôncavo? São questões que uma universidade que se autodenomina imbricada no Recôncavo não pode se abster. E, vale lembrar aos pragmáticos de plantão, essas ações podem ser as fontes de recursos que precisamos principalmente em momentos de crises.
Lembro que discutimos a criação de uma Agência de Desenvolvimento do Recôncavo, como uma ação complementar que permitiria à UFRB se constituir mais e mais numa “multiversidade”, justamente para promover estudos e propostas de políticas públicas sobre questões como essas. O apoio de ministérios como o da Cultura e Transportes e a Petrobrás a esse projeto de Agência de Desenvolvimento contribuiu para que o MEC, inclusive, disponibilizasse mais cargos de direção para a UFRB em relação às outras instituições criadas no mesmo período que nós. Com o tempo, estabelecemos outras prioridades e desistimos desse caminho.
Somos uma liderança consolidada e reconhecida pelos pares para estabelecer instrumentos capazes de congregar a UFBA, a UNEB, a UNILAB, o IFBA, o IFBAIANO e a UEFS em torno de projetos para o Recôncavo por meio de propostas como essa Agência que ficou no meio do caminho. São sete instituições públicas de ensino superior no entorno da baía que por muito tempo foi o centro real do Império Português. Excluindo-se Salvador, essas instituições possuem quinze campi nessa região histórica e é razoável considerar que a UFRB deve se responsabilizar pela articulação entre elas para o desenvolvimento de ações conjuntas sobre o Recôncavo.
Esse sentimento do Recôncavo como um lugar especial, de ancestralidade, da diversidade cultural, da “pedra pisada de preto, luso, banto, sudanesa”, do lugar do povo que efetivamente construiu o Brasil “e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”, não pode se esvair do nosso projeto institucional. Assumimos desde sempre um lugar de uma universidade regional, mas estamos nos distanciando dos exemplos institucionais desses modelos de universidade. O nosso projeto civilizatório precisa ter uma base local e isso precisa ser retratado em ações institucionais profundas.
Não devemos nos conformar, como em muitas universidades, em uma estrutura que deixa esses esforços, de forma relativamente dispersa, aos seus professores, técnicos-administrativos e estudantes, relegando às instâncias coletivas superiores um papel secundário e, portanto, incapazes de articular essas ações.
Há pouco tempo, no início da nossa história, conseguimos contaminar as instâncias de poder de amplo espectro ideológico sobre o papel estratégico que poderíamos desempenhar no Recôncavo e a nossa existência passou a ser a garantia para inúmeras ações nesse território. Precisamos assumir mais e mais essa posição e não nos afastar dela: O nosso desafio tem que ser a busca pela transformação radical do nosso lugar, assumindo que o local protópico criado e transformado poderá servir de inspiração para a transformação em outros locais.
Fizemos e continuamos fazendo muito, mas precisamos assumir que institucionalmente precisamos fazer mais. Esse é o nosso compromisso pétreo com o povo do Recôncavo, tomado no nosso projeto constitutivo como o território de aprendizagem da universidade que nascia. Sem isso, por mais que façamos, será inexorável que se consolide um efetivo desencantamento do Recôncavo com a nossa instituição. Precisamos evitar que isso aconteça reinventando a nossa relação com esse território.
Lembro que certa vez, reunido com Gilberto Gil e Dona Canô em Santo Amaro, ele me disse: “não se entende o Brasil sem se entender a Bahia, não se entende a Bahia sem se entender o Recôncavo, logo, para entender o Brasil é necessário entender o Recôncavo.” Se Gil está certo, e eu aposto que ele está, precisamos nos colocar na posição de quem tem como trabalho traduzir o Recôncavo para todos os que querem entender o Brasil. Precisamos dar exemplo de como a luta contra o retrocesso sociopolítico e cultural pode ser exercida dentro de uma universidade cujo sonho de existência foi o mais contra-hegemônico em toda a história do Brasil, justamente por ela estar aqui e carregar o nome da sua cara, o nome da sua carne: Federal do Recôncavo!