UNEBIAR

A Bahia foi, nos primeiros séculos da história do Brasil, o lócus principal do encontro entre colonizadores, nativos e africanos escravizados. Nesse processo somos o palco do nascimento das primeiras instituições brasileiras e, indo além, de todas as Américas. Como diz nosso Gil:  “Que Deus entendeu de dar/ Toda magia / Pro bem, pro mal / Primeiro chão da Bahia/ Primeiro carnaval / Primeiro pelourinho também /Que Deus deu…”

É compressível que a nossa Bahia tenha muitas instituições que no seu estado da arte, em cada momento histórico, expressam nossos encontros, desencontros, resistências, rebeliões, negociações e redimensionamentos culturais.

Cada instituição, cada política pública, cada espaço de cidadania tem uma história que merece ser reverenciada e contada para as novas gerações. A UNEB aguça a minha imaginação e sempre que visito ou passo por um dos seus campi Bahia afora, fico pensando quão dura e significativa foi aquela conquista.

Vale lembrar que ainda no século XVI, em lugares como Salvador, Porto Seguro e Ilhéus, já haviam escolas para filhos de portugueses, onde os jovens recebiam aulas de gramática, latim, música, humanidades, retórica, filosofia e teologia. Com o tempo, os conteúdos formativos, a metodologia, as avaliações e o rigor do ensino conferiam um alto nível pedagógico e cultural a essas inciativas, fazendo com que, na prática, algumas funcionassem como ensino superior mesmo sem nunca ter sido oficializado como tal. A UNEB e outras instituições de ensino superior da Bahia vêm de longe e ainda precisamos escrever as trajetórias que nos levam a esse passado e como desafiamos os cânones europeus e estamos escrevendo novas páginas a partir das matrizes culturais afroindígenas!

Fico a pensar nos desafios pioneiros. Primeiro, com escolas isoladas depois reunidas numa universidade. Campi sendo criados, as dúvidas administrativas e orçamentárias, a construção dos primeiros projetos pedagógicos, a necessidade de improvisação, as desconfianças, o imperativo de se diferenciar com altivez de projetos políticos menores que algumas vezes foram o motivo inicial para a implantação de um campus. As primeiras pesquisas, o início da extensão, a luta por merecer o título de universidade – ali, naquele lugar. O desafio de implantar um campus universitário – a política pública mais sofisticada que um lugar do mundo pode sonhar e que, naquele caso, chegou antes de tantas outras políticas.

Num Estado profundamente soteropocentrista, essa história da UNEB impressiona. Ainda me lembro, criança em Itabuna ou Teodoro Sampaio, aprendendo noção de espaço e completamente confuso ao ouvir os adultos, preparando-se para viajar a Salvador, falarem: “Vou para a Bahia”. Muitas vezes a minha sensação é que eu não estava em lugar nenhum.

A UNEB é um grande exemplo de superação do povo baiano. Não o único. Seguramente cada instituição tem a sua história e suas singularidades não comparáveis. Ao afirmar isso, homenageio todos os esforços de tantas instituições públicas baianas, particularmente todas as nossas instituições públicas de ensino superior. Escolho a UNEB como símbolo pela radicalidade que o seu projeto apresenta na democratização da educação superior pública Baiana. Ela é um símbolo maravilhoso de uma Bahia que deu certo, independente dos “donos do poder” de plantão.

Lembro que no processo de implantação da UFRB, a cada novo campus havia sempre quem dissesse: “o senhor está querendo concorrer com a UNEB?” E eu, sem poder responder, pensava: “Quem me dera, quem me dera!”

Foi por isso que fui tomado de satisfação quando coube à UNEB ser a primeira instituição a se encaixar na nova diretriz do CEE-BA de transformar o momento de recredenciamento das instituições de nível superior da Bahia em um diálogo com a sociedade baiana sobre a importância e qualidade dessas organizações!

A atual geração de Conselheiros e Conselheiras decidiu realizar um esforço contributivo que possibilite a sociedade baiana vivenciar mais o dia-a-dia das atividades do nosso Conselho e assim entender, ainda mais, a complexidade do processo educacional brasileiro e como é importante a colaboração de todas essas instâncias para que, ao fim e ao cabo, se tenha sucesso na educação. É um caminhar duro e trabalhoso, mas precisamos enfrentá-lo. Em educação não existem atalhos, bala de prata ou soluções milagrosas.

Foi muito auspicioso presenciar, no dia 01 de junho último, a UNEB abrir e iluminar o seu auditório para receber a sua comunidade e a sociedade de todo o Estado para a solenidade de seu recredenciamento pelo órgão que regula o Sistema Estadual de Educação da Bahia.

Consideramos que essa foi uma importante oportunidade da UNEB mostrar a potência nas frentes de atuação das universidades: Pesquisa, ensino de graduação e pós-graduação, extensão, inovações tecnológicas, gestão financeira e infraestrutural, direitos humanos, inclusão, políticas afirmativas, internacionalização, sustentabilidade, acessibilidade, tecnologia da informação e comunicação e sistema de bibliotecas, dentre outras.

Para além disso, ampliamos o alcance do debate sobre Avaliação Institucional.  É muito importante explicitar à sociedade que a universidade pública brasileira é, muito provavelmente, a instituição mais auditada da administração brasileira.

Nesses quarenta anos como universidade, nosso desejo é que a UNEB possa ser cada vez mais UNEB e assim consiga UNEBiar a Bahia, o Brasil e o mundo. Precisamos cada vez mais de técnicos, profissionais das artes, das letras, das humanidades, das ciências da terra e da natureza bem formados como intelectuais livres, intelectuais públicos e capazes de enfrentar debates na arena sociopolítica. Precisamos, cada vez mais de UNEB´s.

Nunca precisamos tanto de uma universidade. Ela é a principal matriz da intencionalidade pública de edificação de uma cultura das culturas. No momento em que a arena sociopolítica nacional e do mundo é cada vez mais tomada por disputas de narrativas que estabelecem que a criação e a modelagem da opinião pública, e mesmo de políticas públicas, devem ocorrer mais aos apelos e às emoções e às crenças pessoais do que aos fatos objetivos, é crucial não nos deixarmos contaminar por isso, ao contrário, precisamos contaminar o mundo com a nossa busca por uma cultura do saber, fortalecimento das artes e da solidariedade.

Vídeo do CEE-BA sobre o Recredenciamento da UNEB.

Sessão Solene de Recredenciamento da UNEB.

UFRB: 20 ANOS

 

O dia era 14 de março de 2003.

Após um tumultuado processo de sucessão (espero que a UFRB não herde essa característica), a Escola de Agronomia da UFBA, que tinha perdido o dom de sonhar, cochilou por alguns segundos e, num momento de descuido das forças hegemônicas, venci a eleição para Diretor. Nos últimos dias da campanha os outros dois candidatos construíram uma aliança, felizmente, sem sucesso.

Por uma deferência do Magnífico Reitor Naomar de Almeida-Filho, pela primeira vez na história, o Conselho Universitário da UFBA se reuniu, fora de Salvador, para a cerimônia de posse daquela que era a única instituição federal de ensino superior no interior da Bahia. Sempre Naomar!

Conforme combinado, após a minha posse foi incluído como ponto de pauta na reunião do Conselho Universitário a discussão sobre a transformação da Escola de Agronomia da UFBA na Universidade Federal do Recôncavo. Interessante, só prôpus o complemento “da Bahia” depois, quando percebi que era assim que a região era denominada nos registros mais antigos. Recôncavo da Bahia. Como deliberação, ficou definido o estabelecimento de uma comissão para apresentar ao MEC a proposta de desmembramento da Escola de Agronomia para criação da nova universidade.

Na Escola de Agronomia, perplexos, muitos anunciaram o fim do mundo. Na década de 1990 a entrada de professores nas universidades federais era a conta-gotas. Eu era o mais novo docente do campus. Após ser eleito Diretor, propor, já na posse, a criação de uma universidade, era uma ousadia muito grande para aquela comunidade em estágio de letargia. Lembro do querido Luiz Haroldo, comentando: “Tem gente em pânico, dizendo que você vai destruir a Escola de Agronomia!”

o Então Deputado Walter Pinheiro, presente na posse, discursou, com fina ironia: “Aviso aos desconfiados e alarmistas que Paulo Gabriel não vai acabar com a Escola de Agronomia, no máximo vai transformá-la na primeira universidade federal do interior da Bahia.”

Há vinte anos, éramos poucos, pouquíssimos! A comunidade acadêmica do Recôncavo que apostava nessa ideia de uma “tal UFRB” era composta por Geraldo Sampaio, Alícia, Gilca, Dayse, Carlos Augusto, Rosilda, Railda, Luiz Haroldo, Ana Coelho, Aída, Edson (Café) e mais alguns poucos. Só esses! No mais? Tratavam o assunto com desdém e “conversa mole de Paulo Gabriel e Naomar.”

Havia muita esperança no ar! O povo do Recôncavo, ainda em júbilo com a posse do Presidente Lula, ocupou o campus. Delegações de movimentos sociais, prefeitos, lideranças de todo o Recôncavo e da Bahia, tomaram o campus de Cruz das Almas, numa festa de proporção inesperada e inesquecível. Começamos, naquele dia, uma das maiores mobilizações populares da história do Recôncavo e, considerando a trajetória dessa região, isso não é nada desprezível!

Sônia Bahia, esposa de Geraldo, liderou uma equipe que preparou um impecável café da manhã colonial para os convidados e dona Risoleta (quanta saudade dela!), passou a noite decorando o Salão Nobre.

Lembro muito bem: quando eu terminei o discurso, as palmas estavam cessando, um negro de dois metros de altura grita de lá: “navio negreiro já era, agora quem manda é a galera, nessa cidade nação! Viva Castro Alves que hoje completa 156 anos de nascido aqui no Recôncavo”. Era rara manifestações como aquela no Salão Nobre da velha Escola de Agronomia. Tenho Certeza, foi ali que o zeitgeist atingiu o Recôncavo e nos embalou para a conquista daquela que vinte anos depois, contra a previsão da maioria, se transformou na maior, mais inclusiva e mais negra universidade federal criada no Brasil nesse período. Espero que esse Espírito do Tempo não nos abandone. Ele faz muita falta!

Lembro que ao final desse lindo dia, os professores da UFBA, Osvaldo Barreto (Diretor da Escola de Administração) e Albino Rubim (Diretor da Escola de Comunicação ), se despediram,  brincando e assustando aquele jovem Diretor, ainda perplexo com tudo aquilo: “isso não foi uma posse de diretor, foi posse de reitor”.

 

O RIO DANDO AULA DE BAHIA

 

Que Beija-Flor linda!

Como não tremer com um samba tão magistral? Naquele 2 de julho o Sol do triunfar/ E os filhos desse chão a guerrear/ O sangue do orgulho retinto e servil/ Avermelhava as terras do Brasil”.

Sabe lá o que é gritar em rede mundial de televisão e computadores que quem comemora o Sete de Setembro é demagogo e que a “Ordem é o mito do descaso/ Que desconheço desde os tempos de Cabral / A lida, um canto, o direito/ Por aqui o preconceito tem conceito estrutural”. A denúncia de um Brasil organizado socialmente sob o preconceito estrutural está lá, expressando a nossa marca mais perversa e de difícil superação!

Já me contaram que no projeto inicial, J.J. Seabra propôs que a Avenida Sete, a mais tradicional de Salvador, tivesse 2 de Julho como topônimo, mas naquele início do Século XX, os financiadores exigiram que ela fosse denominada Sete de Setembro.

O Centro-Sul do Brasil parece odiar o nosso 2 de Julho. Ao editar o Decreto 9.853/2019 que criou a “Comissão Interministerial Brasil 200 anos”, Bolsonaro determinou: “Os trabalhos da Comissão Interministerial Brasil 200 Anos serão encerrados até o dia 1º de março de 2023, mediante apresentação do relatório final”. Ou seja, explicitamente impediu que o nosso 2 de julho integrasse o ciclo de comemorações oficiais do Bicentenário da Independência do Brasil. Alguém precisa sugerir a Lula que corrija e impeça essa agressão ao Povo Baiano. Ainda dá tempo!

Três Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro colocaram a Bahia como enredo em 2023. Além da Beija-Flor, fomos homenageados pela Unidos da Tijuca e pela Estação Primeira de Mangueira. Um dia ainda vou fazer um levantamento de todas os enredos dessas escolas que já trouxeram a Bahia como tema! Esse é um material tão rico que me parece um antídoto perfeito a qualquer problema de autoestima que algum baiano desavisado tenha!

A Unidos da Tijuca cantou Um banho de axé pra purificar/ Um banho de axé nas águas de Oxalá/ Sou tijucano rompendo quebrantos/ Eu canto a Baía de Todos os Santos.”

A Estação Primeira de Mangueira entrou majestosa: Oyá, oyá, oyá eô!/ Ê matamba, dona da minha nação/ Filha do amanhecer/ carregada no dendê/ Sou eu a flecha da evolução/ Sou eu Mangueira, a flecha da evolução/ Levo a cor, meu ilú é o tambor/ Que tremeu Salvador, Bahia/ Áfricas que recriei/ Resistir é lei, arte é rebeldia”.

Enquanto na Bahia “a gente bebe pra sentar” e não vai além da “zona de perigo”, é maravilhoso ver a força do samba-enredo carioca.

O carnaval da Bahia é insuperável, mas até preocupa quando ouço que o carnaval Carioca e Paulista está se “baianizando”. Espero que isso diga respeito à deliciosa cultura de blocos e não às entediantes músicas que ultimamente tomaram conta da cena do nosso carnaval e que não expressam a nossa reconhecida e testada criatividade!

Talvez haja espaço para políticas públicas nesse campo. Como contribuir para um brilho ainda mais reluzente da incrível criatividade baiana? Quantos cariocas participam, todos os anos, dos concursos de sambas-enredo das centenas de escolas de samba das diversas divisões que compõem a estrutura do carnaval do Rio de Janeiro? Isso é um programa de formação continuada (não formal) muito potente! A maior incubadora de talentos musicais do Brasil. O resultado é visível. Imagine os Blocos de Carnaval da Bahia  promovendo festivais de música baiana durante o ano?

A minha esperança está nos Blocos Afro e na criatividade de gente como a turma da BaianaSystem! Os Blocos Afro já emplacaram tantas músicas legais!, eles deveriam investir mais na formação dos seus compositores, como fazem as Escolas de Samba do Rio de Janeiro! Afinal:

“Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade Somos nós a alegria da cidade Apesar de tanto não, tanta marginalidade Somos nós a alegria da cidade”

 

 

VOLTA ÀS AULAS: A FELICIDADE GUERREIRA

Paulo Gabriel Soledade Nacif

 

Quem não se cansa de ler “Cem Anos de Solidão” sabe bem o tamanho da felicidade que a volta de Úrsula causa em José Arcadio Buendía: “’Era isto!’, gritava. ‘Eu sabia que ia acontecer.’ E acreditava mesmo nisto, porque nas suas concentrações, enquanto manipulava a matéria, rogava do fundo do seu coração que o prodígio esperado não fosse a descoberta da pedra filosofal, nem a liberação do sopro que faz viverem os metais, nem a faculdade de transformar em ouro as dobradiças e fechaduras da casa, mas o que agora tinha acontecido: a volta de Úrsula.”

É isso!, a volta às aulas, notadamente num Estado como a Bahia e, ainda mais, nesse momento de novo normal pós-pandemia, deve causar esse tsunami de felicidade guerreira em toda comunidade escolar e também em todos os baianos.

A escola é a maior tecnologia inventada pela humanidade. É incrível como ela se constitui a partir de uma comunidade imediata e, a partir desse nó, completa a sua existência numa rede de elementos interativos constituídos pelas dimensões material, social e política. Sem considerar essa dinâmica da rede, definida por atores, instituições, mensagens, crenças e valores que a frequenta e apesar da concretude com que um prédio escolar se impõe aos nossos sentidos, não é possível apreender essa escola em sua completa existência. E, sem isso, não enfrentaremos nossos desafios!

É risível qualquer argumento que defende que a Escola pode ser substituída pelo homescholing ou será ultrapassado por processos associados à Educação à Distância. E se você não concorda comigo, e, mais que isso, não sente esse regozijo com o início das aulas, sinto muito: Você precisa revisar os seus conceitos ou aquecer o seu coração.

Sim, há inúmeros desafios que a Escola Baiana precisa enfrentar. Temos 98,2% das nossas crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos matriculados no ensino fundamental, mas só 64,5% concluem essa etapa até completarem 16 anos. No ensino médio, 58,6% dos nossos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados e somente 50,2% concluíram essa etapa ao completarem 19 anos. A proficiência dos alunos do 2o ano do Ensino Fundamental em Matemática e Língua Portuguesa expressa grandes desafios do sistema educacional baiano: Apenas 9,7% dos alunos atingem os dois níveis mais altos, em Matemática, e 8,4%, em Língua Portuguesa.

A Bahia manteve ao longo da sua história uma difícil relação com a educação. O Estado teve a escravidão como mola propulsora do seu desenvolvimento econômico, levando esse processo a estágios superiores a outros territórios no que diz respeito à nossa organização social. Como resultado dessa ignomínia não conseguimos estruturar um pacto para superar esses desafios que, ao fim e ao cabo, ainda persistem retroalimentados por essa herança escravocrata.

Números como esses expressam uma sociedade profundamente desigual no presente e, lamentavelmente, a persistência futura, por décadas, dessa desigualdade perversa. Essa é uma verdade dura e para mudar esse curso será necessário construirmos um processo extraordinário que conduza a uma disruptura sociocultural monumental e virtuosa. É lógico que isso só ocorrerá por processos associados a toda sociedade baiana, mas cabe destacar que a escola é um lócus incontornável para a construção dessa mudança.

O início das aulas é um ótimo momento para refletirmos profundamente sobre a construção desse processo disruptivo a partir da escola. Humberto Maturana (1928-2021) me inspira muito a imaginar a volta às aulas  como um período que deve ser usado para pensar o quanto podemos e devemos valorizar na escola o momento do recomeço: A célula inicial que funda um organismo estrutura uma dinâmica histórica que resulta em um devir de mudanças estruturais contingente com a sequência de interações do organismo, que dura desde seu início até́ sua morte e, assim, o presente do organismo surge em cada instante como uma transformação do presente do organismo nesse instante. O futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem. É com base nessa compreensão que devemos considerar a educação e o educar.

Considero que a volta às aulas deve ser comemorada como a chegada do Ano-Novo. Fogos, contagem regressiva na TV, discursos do Presidente, Governador, Prefeito, roupa nova, amigo secreto, banhos de mar e rio, promessas e, acima de tudo, um grande esforço para cumpri-las. Fico sonhando com a instituição do Dia Nacional de Volta às Aulas: Um dia em que todo o Estado/País deve parar para refletir no trabalho, em casa, nas escolas, no trabalho, nos quilombos, no campo, nos territórios indígenas, na periferia, nas praças, nos shoppings, nas redes sociais, nas mídias tradicionais, nas igrejas, em cada canto, sobre o papel da Educação e da Escola e assim se preparar para aproveitar essa dádiva que está na nossa Constituição, o direito ao pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Que promessa você fará nesse Ano-Novo Escolar?

“…Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motimEm cada intervalo da guerra sem fimEu canto, eu canto, eu cantoEu canto, eu canto, eu canto assim
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira…”
Zumbi, Gilberto Gil

 

A Eternidade do Professor Joelito

 

Era março de 1985. Depois de um ano muito duro estudando num curso pré-vestibular em Salvador e tendo sido aprovado nos vestibulares de Agronomia na UFBA e Medicina na Baiana, decidi ir contracorrente. Em meio à forte pressão para escolher o curso de maior validação social, parti para visitar Cruz das Almas, aonde pretendia residir.

No ônibus da Empresa Viazul havia um grupo de paulistas – jovens turistas que viajavam para Valença. Começamos a conversar. A viagem era longa, durou quase cinco horas, passamos por Santo Amaro, Cachoeira, São Felix e Muritiba. Ainda fomos brindados com a espera da manobra do trem na Ponte Dom Pedro Segundo, sobre o Rio Paraguaçu – um tédio para a rotina dos  que usavam frequentemente aquela travessia, mas uma festa para nós, jovens universitários. Falo assim porque passei a me sentir imediatamente como um deles. Aquela viagem, com aquele ambiente tão animado e diverso, me cativou completamente. Eu rapidamente me entrosei com aquela turma. Ao chegarmos em Cruz das Almas, só não segui com elas e eles por absoluta falta de dinheiro.  Dois daqueles jovens estudavam agronomia na ESALQ/USP e lembro que um deles falou: “Você estudará com o melhor professor de Solos do Brasil: O professor Joelito!”.

Eles haviam assistido a uma palestra do Professor e estavam encantados com a capacidade de comunicação e conhecimento daquele “Baiano de Aracaju”. O entusiasmo era tanto que o outro estudante logo me disse: “Quando começarem as aulas, procure professor Joelito e se ofereça para fazer qualquer coisa, lavar o laboratório, limpar banheiro, carregar amostra de solos, limpar o sapato dele, qualquer coisa! Mas se aproxime e vá trabalhar com ele!”.  A empolgação daqueles estudantes com o curso de Agronomia e com aquele professor foi decisiva para que eu tivesse certeza de que estava fazendo a escolha correta para o meu futuro!

A viagem com os universitários paulistas e as nossas conversas ficaram guardadas na minha mente! Na primeira oportunidade, ainda no primeiro semestre da graduação, entrei, acompanhado do colega Antenor, no gabinete do “melhor professor de Solos do Brasil” e nunca mais saí. Estou aqui até hoje!

Ser professor é vivenciar uma experiência radical e concreta de imortalidade. O Professor Joelito mudou a minha vida (e de tantos outros) e, podemos, assim, mudar a vida de outros tantos, que farão o mesmo à frente! Como ensina Saramago “se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.”

Foram muitas as aventuras com Joelito. Na graduação, achava ele tão bom que, em segredo, eu o tratava de Jojó de Olivença, célebre surfista à época! Um dia, depois de horas de coleta de amostras de solos no campo, ele me disse: “ A vida é dura, a gente aqui suando para estudar os solos e tem gente que ainda chama a gente de Jojó de Olivença, não é Paulo? ” E deu um belo sorriso! Até hoje eu não descobri quem contou o meu segredo!

Muitas vezes estivemos em lados distintos. Ele sempre respeitou e até incentivou os meus outros caminhos…

Abaixo, um texto que o emocionou muito. Foi escrito pela professora Lícia Barros, Coordenadora do Programa de Iniciação Científica da UFBA na década de 1980. Resume bem o espírito de Joelito de Oliveira Rezende.

RESPOSTA A UM JOVEM PESQUISADOR

Em recente encontro que uniu o VIII Seminário Estudantil de Pesquisa com o III Seminário Universitário de Pesquisa de Docentes, promovido pela Universidade Federal da Bahia, discutiu-se a “Problemática da pesquisa e suas Implicações na produção do conhecimento”.

Nessa ocasião, ante um quadro bastante desfavorável de omissão, de falta de participação dos professores e alunos, um estudante-pesquisador, Paulo Gabriel Soledade Nacif, da Escola de Agronomia, após o debate, falou em nome dos discentes, deixando uma angustiada pergunta no ar: diante de tamanho desinteresse dos professores, muitos deles repetindo as aulas que proferiram há anos atrás, cumprindo uma mera rotina de despejar conhecimentos (alguns deles já ultrapassados), o que seria dele? Se, após repetidas discussões anuais e reiteradas queixas pela indiferença do professorado para com iniciativas de fomento ao ensino e pesquisa, nada mudou, quem iria lhe socorrer e a seus colegas?

A mesa debatedora, a quem foi dirigida a indagação, devolveu-a ao plenário.

Coube à professora Suzana Alice Cardoso respondê-la com excelente reflexão sobre a postura a ser adotada, salientando a importância de Conselhos e Colegiados assumirem, de fato, o seu papel de formuladores da política acadêmica e neles, cada membro, cada professor, decidir-se por uma efetiva participação, colaborando, desse modo, para o crescimento e melhoria da vida da instituição.

Na oportunidade, dado o adiantado da hora, em muito ultrapassado o tempo destinado à mesa redonda, com prejuízo das atividades subsequentes, abstive-me de interceder, o que faço agora, complementando as palavras da Professora Suzana Alice.

Paulo Gabriel,

Para você, que chegou onde está, que vem se dedicando à pesquisa, não há realmente riscos. Seu trabalho, em conjunto com o colega Antenor Aguiar Neto, é excepcional. Concorrendo ao Prêmio Jovem Pesquisador/1988, obteve nota máxima em todos os itens, mereceu louvores de seus examinadores e a ressalva de que não é apenas uma monografia de graduação. É, sem favor, uma autêntica dissertação, em nível de mestrado, de excelente qualidade.

Portanto, você, Antenor, e todos os 429 estudantes participantes do Seminário de Pesquisa, estão a salvo.

Constituem um grupo especial, alerta, quando muitos hibernam. Já encontraram seus caminhos e estão na direção certa. Mas, e os outros? Sua preocupação – altruísta que foi – se estendeu aos outros. Aos demais alunos de nossa Universidade. Sobre eles recai, evidentemente, uma ameaça. O que pode então ser feito?

O quadro não é tão desolador! Há muitos professores cientes de suas responsabilidades, dedicados ao seu mister. Vocês próprios tiveram a chance de conseguir um orientador do quilate do Professor Joelito de Oliveira Rezende, altamente interessado na formação do pesquisador, na melhoria da qualidade do ensino. Como ele, há dezenas de outros. Mas a grande massa estudantil não percebeu, não se interessou, não está usufruindo. Esses mestres passarão e terão que ser substituídos, no futuro.

Então, a solução está exatamente em vocês. Os seus contemporâneos – infelizmente – continuarão alheios aos benefícios.

Mas as outras gerações de estudantes hão de sentir os influxos benéficos advindos da riqueza latente de cada um de vocês – pesquisadores incipientes de hoje. Cada ação, embora isolada, irá contagiando quem lhe rodeia e, como círculos concêntricos, expandindo seu raio de alcance. Na introdução do livro de resumos das Comunicações do último Seminário citei Machado de Assis, ao dizer que “alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”.

São vocês, estudantes, a âncora, a tábua de salvação! Continuem! Cada um de nós forja o próprio destino, Deus nos deu o poder de “decidir, de perseverar em vez de desistir”. Por isso, parafraseando Og Mandino, escolham crescer… em vez de apodrecer, agir…em vez de procrastinar. Usem com sabedoria o seu poder de escolha. Chegará o dia em que seus planos serão ouvidos pelos outros e “suas palavras se transformarão em feitos realizados”.

A resposta, jovem, está em suas mãos.

 

Salvador, 15 de dezembro de 1988.

Lícia Margarida Senna Borges de Barros

Coordenadora do Programa Estudantil de Pesquisa da UFBA

 

 

 

RECÔNCAVO ABSOLUTO: SUA MAGIA, SEUS LICORES

“O melhor o tempo esconde
Longe, muito longe
Mas bem dentro aqui…”

Trilhos Urbanos – Caetano Veloso

Cheguei no Recôncavo com dez meses de idade. Era fevereiro de 1965. Meus pais separaram-se logo após o meu nascimento e a minha mãe, com dois filhos pequenos, mudou-se para Teodoro Sampaio, onde existia a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, instituição em que ela trabalhava.

O nome da cidade é uma homenagem àquele que foi o engenheiro mais famoso do final do império e do início do século XX e que nasceu ali. À época o povoado denominava-se Bom Jardim e pertencia a Santo Amaro. Era constante a citação de Teodoro Sampaio (1855-1937) como filho ilustre daquela cidade e, naquele lugar de negros, para nós, crianças, era meio non sense quando destacavam que ele era negro, afinal, por que não seria? Soou estranho quando alguém contou que em 1879, os membros do Gabinete de um Ministro recusaram-se a publicar o nome de Teodoro Sampaio como integrante da Comissão Hidráulica do Império, para não humilhar os outros engenheiros, brancos. Seu nome foi publicado em separado numa edição posterior. É possível que essa tenha sido a primeira aula sobre as dificuldades que teríamos na vida, mas tudo era muito novo no mundo para nos preocuparmos com isso.

Teodoro Sampaio, com cerca de sete mil habitantes, nas cabeceiras do Recôncavo, localiza-se entre três polos que exercem forte influência sobre esse município: a sudeste fica Salvador (96 km, com 2,9 milhões de habitantes), a oeste temos Feira de Santana (46 km, 600 mil habitantes) e a nordeste temos Alagoinhas (35 km, 100 mil habitantes). Esses três polos de diferentes grandezas, exercem forças atrativas irresistíveis para um pequeno município, notadamente quando sabemos que o Brasil sempre careceu de políticas de fortalecimento dessas comunidades.

Essa proximidade a centros maiores se traduziu no seu esvaziamento permanente. Sem potência para resistir à atração desses grandes centros do seu entorno, Teodoro é como um núcleo submetido a forças inerciais que dele tudo retira.  Ou, quase tudo! Ontem, hoje e amanhã, onde há seres humanos, o mundo será reinterpretado e, assim, reinventado. Permanentemente. Histórias são criadas sobre a dor, a chuva, o desejo, o solo, o choro, as estrelas, a alegria, os ventos. Tecnologias são geradas para a comida, a casa e a cura. A arte é inventada para nos salvar da vida. Deuses são criados para nos livrar da morte!

Quando há gente convivendo, um cantinho qualquer esquecido do mundo interage com as forças cósmicas sem que ninguém precise descobri-lo para que isso seja sempre extraordinário. Enquanto houver dia, noite, sol, chuva e convivência, as virtualidades humanas e as suas experiências singulares serão infinitas. A invenção permanente da vida, a partir de cada realidade humana, social e cósmica é a magia mais admirável do mundo.

E o Recôncavo caprichou em magia: Teodoro desenvolveu-se como uma Macondo de Garcia Marquez, realisticamente fantástica. Lá cresci, com direito a circos, ciganos, histórias, deuses – e tudo mais que as pessoas inventam quando são esquecidas do resto do mundo, seja na Nova Guiné, numa Planície do Rio Danúbio, no Saara, no Curuzu, no Harlen, ou num cantinho perdido do Recôncavo da Bahia.

O Recôncavo é o nordeste molhado pelo mar, pelas chuvas e pelos rios. Integra os domínios da imponente Mata Atlântica, não obstante ela seja tão rara de ser encontrada – transformada em cinzas para liberar áreas para a agropecuária, em lenha para os engenhos de açúcar, em madeira para barcos e para tantos outros usos. O desmatamento aqui foi tão rápido e intenso que nos meados do século XVII o Recôncavo já importava lenha do sul da Bahia.

Gilberto Freyre, no livro “Nordeste”, integra o Recôncavo a um conjunto de territórios da região que é diferente daquele seco, dos sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés: “O Nordeste do massapê, da argila, do húmus gorduroso é o que pode haver de mais diferente do outro, de terra dura, de areia seca. A terra aqui é pegajenta e melada. Agarra-se aos homens com modos de garanhona[…] A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo nordeste e no Recôncavo se explica por condições favoráveis de solo, de atmosfera, de situação geográfica. ”

É bastante conhecida a emergência do complexo canavieiro nas áreas baixas do centro-norte do Recôncavo (nos solos localmente denominados massapês), associado, no Sul e ao norte de Salvador, à produção de gêneros alimentícios, madeiras e fumo. Nesse processo, os colonizadores portugueses dizimaram dezenas de aldeias tupinambás e fizeram do Recôncavo um dos principais destinos da diáspora africana. O Recôncavo sempre será, para todo o Brasil, uma referência para estudos de áreas como geologia, oceanografia, pedologia, economia, sociologia, antropologia, literatura, música, artes plásticas e religiosidade.

Como é próprio de cidades como Teodoro Sampaio e outras do Recôncavo, tínhamos o nosso Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos, que passava com frequência por lá, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Lá também havia um mistério que nunca se esclareceu, como foi a morte de José Arcadio, em Macondo. Da mesma forma que havia época de trovoada, época de pipa e o tempo de tanajura, também havia o tempo dos mistérios. A cada estação uma nova história assombrava os moradores daquele lugar. Às vezes uma história vinha acompanhada de conselhos para evitar tragédias e então muitos preferiam seguir as penitências estabelecidas por seus feiticeiros (padres, pastores, mães de santo, médiuns, rezadores e parteiras) para evitar que se cumprissem as sentenças catastróficas anunciadas nas histórias. As penitências poderiam ser uma pedra preta debaixo do pote, a ida a uma missa, uma oração especial, encomenda a um pai de santo ou uma reza de folha.

No Recôncavo e particularmente em Teodoro, vicejam assombrações em todos cantos. Gilberto Freyre, que escreveu um livro sobre o assunto (Assombrações do Recife Velho) se encantaria com esses nossos fantasmas. As nossas histórias são tão incríveis quanto as assombrações da Veneza Pernambucana. A intensidade da integração entre vivos e mortos é quase completa. Só não era mais crível por conta do desespero das pessoas diante da morte de alguém próximo: Afinal, se no dia a dia todos, mortos e vivos, vivíamos imbricados, porque chorar tão atlanticamente a partida de uma pessoa querida?

Minha mania de ordenamento me levou a agregar as assombrações do Recôncavo em três grupos: ambientais, personificadas e animais. As assombrações ambientais são aquelas que aparecem em espaços mal-assombrados: O mercado que já foi um cemitério, uma casa onde alguém morreu em circunstâncias especialíssimas, um prédio abandonado, uma lagoa encantada, o trecho de uma estrada onde houve um acidente ou uma emboscada; as assombrações personificadas são aquelas almas que possuem CPF mesmo no além: Um noivo que morreu no dia do casamento; o cavaleiro da meia-noite,  a mulher de fora que morreu e procura o caminho de volta para Salvador, a procissão das almas, o homem do saco; Temos também as assombrações animais, como a caipora, o boitatá e o curupira. E, num grupo à parte, temos ainda as assombrações que são interfaces daquelas categorias – e aqui o mais famoso é o lobisomem.

O Recôncavo é um território do realismo mágico e que encontrou uma tradução à altura em João Ubaldo Ribeiro, cujo testemunho, presente em “Viva o Povo Brasileiro”, invoco para provar que não estou a mentir. Por isso, não tenho dúvidas sobre a existência de uma ligação subterrânea entre Teodoro Sampaio e Aracataca na Colômbia, por meio de uma gruta onde se encontram os moradores de Macondo e do Recôncavo que desencarnaram e que ficam ali, conversando e preparando novas histórias para quando ressuscitarem. É nessa gruta que Gabriel Garcia Marquez e João Ubaldo Ribeiro se esconderam quando cansaram da vida entre nós.

Minha mãe integrou, desde a década de 1950, as primeiras gerações dos “agentes sociais de saúde” (visitadoras sanitárias) do Brasil como servidora da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, serviço pioneiro no País em assistência, que empregava o trabalho de pessoal auxiliar para o atendimento de grupos como gestantes e crianças, e no controle de doenças transmissíveis. Na FSESP, as visitadoras sanitárias assistiam regularmente nos domicílios às mães e seus filhos recém-nascidos, estando sob sua tutela uma área geográfica e populacional.

O papel que minha mãe desempenhava nessa pequena cidade, que tinha apenas um médico (que também servia a outros municípios), era a chave para que eu fosse conhecido e querido em todo aquele lugar. Eu corria aqueles Recôncavos em todas as direções, nos seus massapês, areias e outras terras movediças, altos e baixos, mandiocais, canaviais, plantios de fumo, pastos e quintais, relacionando-me intensamente com aqueles que, depois, a academia chamaria de mestres de saberes populares, sambadeiras, sambadeiros, pais e mães de santo, bordadeiras, artesãos, cozinheiras, rezadeiras, capoeiristas, contadores de histórias.

Foi assim que tive acesso, por exemplo, às minhas primeiras aulas sobre o Recôncavo. Lembro-me dos trabalhadores de cana voltando para a cidade na entressafra e contando histórias dos baixios do Recôncavo: “Lá em baixo, em Salvador, tem é coisa…”. Sempre me impressionou aquela que, depois descobri, foi a minha primeira aula de geografia, quando um trabalhador me disse: “Eu saio daqui das ‘cabiceira’ do Recôncavo e vou descendo, cortando cana e só paro lá embaixo quando o rio Subaé vira mar”. Causa-me espanto ainda hoje pensar que um trabalhador rural, naquela época, tinha uma ideia tão precisa do Recôncavo – um anfiteatro voltado para a Baía de Todos os Santos, que toma o lugar do palco.

Minha mãe voltou a se casar, com Everaldo, famoso fabricante de licores do Recôncavo e servidor público dos Correios em Santo Amaro da Purificação, município próximo de Teodoro Sampaio. Caetano Veloso canta com precisão em “Jenipapo Absoluto”, sobre a importância do fabrico de licor na vida de algumas famílias do Recôncavo – terra tão propagada pelo sol de fevereiro, mas pouco lembrado pelo seu junho tão frio:

“Como será pois se ardiam fogueiras
Com olhos de areia quem viu
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é jenipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel.”

Everaldo tinha um pouco de José Arcadio, patriarca da família Buendía, “cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia”. Assim, estava sempre em busca de novidades para divertir a família e ter histórias para contar para os amigos. Uma brincadeira, uma história, um brinquedo na feira, um instrumento musical.  Sempre havia uma novidade!

O papel do meu padrasto nos Correios de Santo Amaro e suas profundas relações com aquela comunidade, por exemplo, me permitiram frequentar a casa de Dona Canô antes do mito ser criado. Algumas vezes acompanhei Everaldo ao trabalho em Santo Amaro e em visitas à casa dos Veloso. A proximidade com aquele mundo me fazia ter uma clara preferência pela mãe em relação aos seus filhos, já famosos. Interessante: lembro-me claramente de uma moça que trabalhou na nossa casa lamentando: “Dona Canô é muito legal. Já pensou se Dona Canô fosse mãe de Wanderlei Cardoso, Paulo Sergio ou Jerry Adriani e não desse Caetano Veloso?”. Sim, porque o Recôncavo além do samba de roda, sempre adorou músicas que depois passaram a integrar o que chamam de brega. Talvez por isso, depois que me afinei com a Tropicália, tenha passado a gostar tanto de ouvir Caetano Veloso cantando Fernando Mendes (Você não me ensinou a te esquecer) ou Odair José (Eu vou tirar você deste lugar) e Maria Bethânia a cantar Dalva de Oliveira (Calúnia) ou Carmen Costa (Eu sou a outra). Recôncavo Absoluto.

Aquele mundo me deu régua e compasso para questões fundamentais como a segurança necessária para não ter medo do Recôncavo que eu reencontraria no futuro. Nos anos da reitoria da UFRB, algumas vezes tive de ouvir, sem alterar o semblante (faz parte da liturgia do cargo), de professores e estudantes vindos das mais diversas partes do mundo, me dando aula sobre essa região e quase falando: “É lamentável que a UFRB tenha um reitor que não conhece o povo do recôncavo e não faz ideia do que é pisar no massapê nem da ancestralidade que tudo isso carrega”.

O trabalho de Everaldo nos Correios também foi relevante para um privilégio raro no interior. À época, alguns materiais dos Correios eram descartados por desvios extremos de endereços e, por isso, alguns livros, que nunca chegaram aos olhos a que estavam originalmente destinados, acabaram na nossa casa, o que nos permitia a convivência com livros numa terra sem bibliotecas e livrarias. Livros de química, filosofia, história, receitas de comidas e romances eram comuns na minha casa.

Aquela profusão de livros e o acesso desordenado a eles me deixaram marcas até hoje. Desenvolvi um interesse enciclopédico pelos mais diversos assuntos, não obstante, desde aquela época, soubesse que nem sempre teria capacidade de aprofundar os detalhes de todas as matérias.

Nossa família se tornou tão intensamente do Recôncavo que quando li “Viva o Povo Brasileiro” entendi como era vã a esperança que um dia eu tive de não ter um encontro cara a cara com a morte. Como ensina João Ubaldo: “De mortes bonitas é farta a memória do Recôncavo, tantos os santos homens que se defrontaram de maneira edificante com a gadanha da Grande Ceifadeira, assim legando às gerações subseqüentes exemplos inesquecíveis do bem morrer. Não há mesmo família ilustre que não se compraza em relembrar as diversas mortes belas que cada uma conta em seu acervo tanatológico, seja pelas derradeiras palavras exaladas, seja pelo manto de doçura e paz a envolver o preciso momento do trespasse, seja pelo estoicismo do moribundo, seja pela venusta paisagem ou especialíssimas circunstâncias a cercar os óbitos repentinos, seja pela comoção do povo nas exéquias – tudo isto fazendo com que nestas questões letais, não exista no mundo lugar tão ufano.”

Em 2022 meu padrasto, Everaldo, completaria cem anos, mas ele nos deixou bem antes, levando com ele parte daquele mundo mágico que para mim era completamente real. Repentinamente, em 21 de junho de 1975, chegou a hora de começar a organizar o meu acervo tanatológico e o meu imbricamento mais íntimo com o mundo dos mortos.

Durante todo o ano havia a fabricação de licor na nossa residência, mas a partir do final de abril a casa se tornava uma verdadeira fábrica de licores. O tempo todo chegavam carregamentos de umbu, maracujá, limão, cajá, laranja e, principalmente, jenipapo. Tudo era ocupado por bacias, baldes, funis, cachaça, álcool, sacas de açúcar, muito algodão (que serviam de filtro), ajudantes, e, muita paciência. As encomendas eram imensas e no final de maio começavam as entregas principalmente em Santo Amaro, Cachoeira, São Felix, Cruz das Almas, Feira de Santana, Alagoinhas, Terra Nova, Candeias, Camaçari e Salvador. Sempre que possível eu estava com ele. Everaldo contratava kombis para a entrega e também usava o nosso fusca (Placa CQ0079) nesse trabalho. Foi nele, num sábado chuvoso, na véspera de São João, na BR-324, perto de Feira de Santana, que ele partiu, após um acidente, para servir seus licores no céu.

Lembro que no velório um grupo conversava animadamente sobre o acidente, e eu, lógico, tentando entender tudo aquilo, me coloquei de modo a ouvir a conversa que girava em torno das causas do sinistro:  Afinal, como Everaldo poderia ter capotado, sozinho, naquela reta? Alguém, então, deu o veredito, inquestionável e supremo, com uma certeza típica do povo do Recôncavo: “rapaz, onde já se viu ficar dirigindo meio-dia? É a hora que Cristo morreu e o diabo pensa que dominou o mundo, não se deve dirigir na hora do almoço: essa é hora da guerra do céu e do inferno. Ou você pensa que foi fácil pra Deus ressuscitar Jesus? ”.

Continuamos em Teodoro até 1977. Minha mãe resolveu retornar ao sul da Bahia. O Jenipapo já não era absoluto!

“Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver do que sonhar
É ter o coração daquilo.”

Acima: Teodoro Sampaio (1855-1937), (Folha de S. Paulo. anos 1930).

– Este é o segundo texto da série HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO. Para entender esse projeto, leia aqui: http://paulonacif.com.br/2022/01/03/historias-da-ufrb-e-do-reconcavo/

 

AS BIFURCAÇÕES DA VIDA E A ELEIÇÃO DE 2002 PARA DIRETOR DA ESCOLA DE AGRONOMIA

– Este é o primeiro texto da série HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO. Para entender esse projeto, leia aqui: http://paulonacif.com.br/2022/01/03/historias-da-ufrb-e-do-reconcavo/

A Escola vivia a agonia de uma crise que se arrastava há décadas. Único centro de ensino superior federal no interior da Bahia, falta de pessoal, dificuldade de acompanhar as inovações tecnológicas e acadêmicas que ocorreram em outros centros, com forte endogenia, sem nunca ter encontrado um lugar institucional sustentável no conjunto da UFBA e, para completar, no Provão (Exame Nacional de Cursos) aplicado pelo INEP em 2001, exibimos a pior nota de um curso de agronomia do País, fato que ainda se repetiria em 2005, já no ENADE (Essas notas inclusive seriam responsáveis pela primeira crise da UFRB, em 2007).

Iniciamos 2002 na perspectiva de mais uma eleição entre os velhos grupos de professores que se revezavam na Diretoria desde sempre. Naquela sucessão, dois candidatos colocaram-se nos seus polos tradicionais: Luiz Gonzaga Mendes, de um lado e Valfredo da Silva Pereira, do outro.

O professor Luiz Mendes possuía um discurso liberal e meritocrático com articulações no Governo Federal (Fernando Henrique Cardoso) e Estadual (Paulo Souto), tinha capacidade de captar projetos de estudos e consultorias na área do agronegócio e assim arregimentava, compreensivelmente, o apoio de jovens professores e do setor mais ligado à produção científica, cansados de tantas crises. O professor Valfredo Pereira possuía o apoio dos setores docentes mais à esquerda, servidores e estudantes engajados no movimento estudantil.

Conhecedor daquelas disputas, não me entusiasmava com nenhum dos dois candidatos. Foi fácil perceber que havia um pequeno segmento que não se sentia representado por aquelas candidaturas, professores e técnicos-administrativos mais jovens e estudantes, todos com preocupações acadêmicas e uma visão progressista da sociedade. Assim, formamos um grupo que envolvia professores como Gilka, Alícia, Warli, Carlos Augusto e eu, e servidores técnico-administrativos como Edson, Manuel, Aída e Florisvaldo. A esse grupo juntou-se o professor Geraldo Costa, da velha guarda, mas que também percebia a exaustão daquela disputa antiga e repetitiva. No início, Geraldo considerava impossível entrarmos naquela disputa, mas logo transformou-se num alicerce fundamental de todo processo que se desenrolaria nos anos seguintes.

Definimos que o nosso candidato seria o professor Warli. No final do processo, o nosso candidato definiu não se inscrever, apesar de todos os nossos apelos. Mais uma vez a eleição ocorreu entre os dois velhos grupos.

Como esperado, Luiz Mendes ganhou a consulta com ampla votação nos três segmentos. Votei em Valfredo por não acreditar no modelo de universidade/empresa apresentado pelo professor Luiz Mendes e também porque pelo histórico da nossa relação não haveria nenhuma possibilidade de composição. Eu participara do Movimento Estudantil quando ele havia sido Diretor da Escola de Agronomia na década de 1980 e a nossa relação sempre foi de embates duros, deixando arestas nunca resolvidas.

Em 2002, eu era Chefe do Departamento de Química Agrícola e Solos e o grupo vencedor da eleição tratou de anunciar que enquanto eu fosse a representação do Departamento não haveria diálogo com a gestão vindoura. A vitória daquele grupo político anunciava um período de turbulências para mim, então, aproveitando um convite dos professores Nicholas Comerford e Jorge Gonzaga, comecei a planejar a minha ida para um pós-doutorado na Universidade da Flórida, projeto que foi abortado pelos acontecimentos supervenientes. Aqueles dois anos após o retorno do doutorado foram bem produtivos, consegui os primeiros financiamentos de projetos de pesquisa, estava concluindo a minha quinta orientação no mestrado da Escola de Agronomia e com boas parcerias com programas de pós-graduação e pesquisadores da EMBRAPA, CEPLAC, UFS, UESC, UFV e Universidade da Flórida.

Como muitas vezes ocorria na nossa Escola, a divulgação dos resultados da eleição não significava o fim das disputas e do processo eleitoral – os recursos e apelações eram comuns. O grupo derrotado, tendo o controle da Congregação da Escola de Agronomia, buscou alguma falha no processo eleitoral com vistas a anular eleição. Como sempre, conseguiu: Identificou-se que a representação estudantil já havia completado o seu mandato na Congregação e não houve ato oficial prorrogando os mandatos dos estudantes. Assim, a Justiça Federal determinou inválidos todos os atos da Congregação que contou com os votos dos estudantes. Isso incluía, é claro, a anulação da lista tríplice e, por consequência, a necessidade de uma nova eleição.

Confesso, eu considerava aquela anulação tempo perdido – era nítido que a comunidade expressou o desejo genuíno de ter o professor Luiz Mendes na sua direção. Com isso, criei arestas com o grupo que defendeu a tese da anulação. O professor Mendes falava, com razão: “Podem anular dez eleições, eu continuarei ganhando todas!”

Felizmente a vida é um livro a ser escrito por autores que nem sempre controlamos, e nos meses seguintes alguns fatos mudaram radicalmente a correlação de forças na Escola de Agronomia como poucas vezes na sua história. Em agosto, na Reitoria da UFBA, o Professor Heonir Rocha (com vínculos com Cruz das Almas e aliado do Professor Luiz Mendes) foi sucedido pelo professor Naomar Monteiro de Almeida-Filho e, em outubro, ocorreu a eleição de Lula para a Presidência da República. Com isso, tivemos uma clara fissura na hegemonia exercida pelo professor Luiz Mendes e ele, ao perceber isso, definiu não se candidatar para o novo processo de escolha de Diretor, anunciando o apoio ao professor Alino Santana que passou a ser o concorrente do Professor Valfredo na disputa.

Mais uma vez o nosso pequeno grupo definiu apoiar uma candidatura alternativa, representada pelo professor Warli e começamos a fazer campanha.

No último dia das inscrições, o professor Warli desistiu da candidatura. O nosso grupo definiu que ainda assim nos manteríamos no pleito com um candidato – precisávamos, no mínimo, marcar a nossa posição. Meu nome foi escolhido para representar o grupo. Contribuiu para isso eu ser o mais conhecido da comunidade acadêmica, afinal quinze anos antes eu havia atuado intensamente no movimento estudantil naquele campus e no período após a graduação tinha desenvolvido ações que geravam alguma visibilidade social. Não tive opção. Lembro que a professora Gilka redigiu o requerimento e imprimiu meu currículo – apresentamos o programa de gestão já elaborado para o nosso candidato anterior.

Naquele momento, a Escola estava bem dividida entre os dois candidatos e os setores tradicionais da esquerda mantiveram o seu apoio ao candidato Valfredo – havia um argumento razoável para isso: aquela disputa já se desenrolava há um ano e a minha candidatura foi colocada muito tarde. Eu brincava: “Não preciso de apoio para ganhar, preciso de apoio para governar!”. Com isso, todos ficavam tranquilos. Afinal, era um consenso que a minha candidatura não tinha chance!

Para a surpresa de todos, tivemos uma vitória avassaladora nos três segmentos, sempre com votação acima de 70%. Lembro que alguém do nosso grupo brincou: os novos ventos que sopram no País chegaram ao Recôncavo profundo (“E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo, meu medo”).

Durante a campanha, apresentamos a ideia de transformação da Escola de Agronomia numa instituição independente da UFBA. Eu insisti nessa ideia, mas isso parecia algo distante do debate da comunidade e, mesmo com a ascensão de Lula e o tema da interiorização do ensino federal superior na Bahia estar presente nos pronunciamentos do novo reitor da UFBA, isso não parecia uma temática pertinente para aquele nosso contexto (como abordarei em outros textos, depois aprendemos que essa reação à inovação não é restrita à comunidade da Escola de Agronomia).

É importante registrar que em meio a tantas instabilidades, o Diretor Pró-tempore, Professor Clóvis Pereira Peixoto, foi responsável por uma transição tranquila e transparente, colaborando assim para que o processo de transmissão de cargo ocorresse sem problemas. Um indicativo importante dessa postura foi a sua presença na minha solenidade de posse – fato raro naquela comunidade.

A nossa posse ocorreu na manhã do dia 14 de março de 2003. A percepção política de Geraldo Costa transformou a solenidade num evento memorável. Ele percebeu que era o primeiro grande evento que ocorria no Recôncavo desde a posse do Presidente Lula e buscou transformar esse momento num ato político de apoio ao nosso projeto. Sonia Bahia, esposa do professor Geraldo, esmerou-se em organizar um café da manhã típico do Recôncavo que serviu trezentos convidados. O sabor dos quitutes foi falado aos quatro ventos e por muito tempo. Ainda hoje devemos os custos dessa festa ao nosso professor. A presença de Prefeitos, Deputados e lideranças de toda a Bahia foi uma clara demonstração de que todos esperavam a apresentação de um projeto de impacto naquela manhã e ele veio na forma da proposta de criação da UFRB. A comunidade da Escola de Agronomia assistiu, um pouco assustada, àquilo tudo.

Demonstrando uma intenção que se expressaria na prática nos anos seguintes, o professor Naomar convocou o Conselho Universitário da UFBA que, sinais dos tempos, realizou a sua primeira reunião fora de Salvador. Naqueles três anos que seguimos até o início das atividades da UFRB, o professor Naomar visitou a Escola de Agronomia mais do que a soma de todos reitores da UFBA desde 1967, quando o campus de Cruz das Almas foi incorporado à universidade.

No dia da posse, o Conselho Universitário da UFBA autorizou o Reitor a criar uma comissão com vistas a apresentar o projeto de desmembramento da Escola de Agronomia e a criação da Universidade Federal do Recôncavo. Numa demonstração de compromisso com aquele projeto, Naomar indicou o seu Vice-Reitor, Francisco Mesquita para coordenar a Comissão.

Lembro que dias depois da posse, o pequeno grupo mais orgânico que dava sustentação à Diretoria me chamou para uma reunião. Em resumo, me foi dito que não era possível priorizarmos o projeto de luta por uma universidade naquele momento, precisávamos focar na resolução dos problemas da Escola de Agronomia.

A minha resposta foi no sentido de concordar com as preocupações, afinal a Escola de Agronomia realmente tinha problemas das mais diversas dimensões. Ponderei, no entanto, que as raízes dos nossos problemas estavam na institucionalidade constituída no processo de incorporação da Escola à UFBA e que não conseguiríamos ir longe na busca por soluções das nossas questões naquele arranjo institucional. Naquela estrutura não haveria salvação para a nossa Escola. Precisávamos usar a posição de mais antiga instituição federal de ensino sediada no interior da Bahia (desde 1859) para liderar um projeto de fôlego, afinal, o Governo Lula e o Reitorado de Naomar eram uma oportunidade única que não tínhamos o direito de abandonar.

Nessa noite, houve quem ponderasse sobre a pertinência de lutar por um Centro de Ciências Agrárias ou por uma Universidade Federal Rural da Bahia (UFRB). Felizmente venceu o projeto da Universidade Federal do Recôncavo (UFR).

Definimos naquela reunião que o esforço para a conquista da Universidade passaria a ser o principal eixo da gestão que se iniciava. Eram os primeiros dias de abril de 2003. Estávamos prontos para a luta!

HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO

 

Modéstia à parte, conheço o Recôncavo como poucos!

Cheguei nesse pedacinho de planeta com onze meses de idade. Nasci em Coaraci, no sul da Bahia, mas a minha família mudou para Teodoro Sampaio (fotos abaixo), nas cabeceiras do Recôncavo e lá eu vivi até os doze anos. Em 1976 mudei para Itabuna, mas nunca mais quebrei meus laços com Teodoro. Estudei agronomia em Cruz das Almas, me especializei em solos e participei de estudos sobre meio ambiente em todos os ecossistemas associados a essa região.

Em 1992, passei a ser professor da Escola de Agronomia da UFBA em Cruz das Almas e participei, numa posição bem privilegiada, do processo de implantação da UFRB. Não sem razão, há muito sou cobrado para escrever de forma sistematizada sobre a minha participação na construção da UFRB e minha relação com o Recôncavo. Resolvi, então, fazer uma aproximação dessa tarefa por meio do meu blog. Sempre que a inspiração chegar, escreverei sobre essas temáticas. Esse será o nosso ponto de partida, mas como saber onde isso dará?

 

Universidade Federal de Dona Canô – UFRB

Paulo Gabriel Soledade Nacif

“Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô”

Caetano Veloso

Hoje, 25 de dezembro, é dia do Recôncavo lembrar de Dona Canô. Há nove anos, neste dia, ela nos deixava em direção ao Orum!

Depois de muitos anos de implantada, a UFRB é uma realidade e a história da luta pela sua constituição foi, compreensivelmente, ficando para trás. Outro dia um intelectual fez questão de declarar que “a mobilização pela criação da UFRB pouco significado teve, na medida em que a expansão do ensino superior era algo anteriormente definido pelas estruturas de poder”. Prosseguindo, ele usou como prova de sua tese o Programa REUNI, que veio logo após a criação da universidade. Não estava presente no momento dessa declaração. Caso tivesse tido oportunidade, perguntaria a ele por que então a expansão do ensino superior federal na Bahia começou exatamente aqui? Por que começou aqui no Recôncavo e não em outras regiões com maior dinamismo econômico e maior importância política?

A Escola de Agronomia era um bom motivo? Um campus, com apenas um curso de graduação  e um mestrado, até poderia ser um bom motivo, mas não era suficiente para sensibilizar quem tomava decisões. Não há outro caso de um  campus, pequeno como o nosso, transformado em sede de uma nova instituição à mesma época.

Não tenho dúvidas, a mobilização da comunidade foi o fator determinante para que, registre-se, contra um prognóstico inicial presente no próprio Governo Federal, a expansão do ensino federal superior na Bahia começasse pelo Recôncavo. E, no percurso da UFRB, precisamos lembrar da participação de Dona Canô nessa história. A mobilização chegou a câmaras de vereadores, escolas, sindicatos, Clube de Diretores lojistas, deputados, senadores. Mobilizamos todo o Recôncavo.

Ainda em 2003, fui levado a Dona Canô, que logo disse: “Uma universidade vai ser tão bom. Eu me preocupo tanto com os jovens, eles param de estudar, ficam sem emprego. Eu vou falar com Lula”. E depois disso, ela participou ativamente da campanha, emprestando a sua imagem, sua assinatura, vestindo a camisa, dando declarações e, inclusive, falando com Lula. Em uma reunião em Brasília, após ser cobrado por grandes lideranças políticas sobre a criação da UFRB, o Presidente Lula disse com muito carinho: “Essa universidade do Recôncavo é um pedido de Dona Canô!” O professor Henrique Paim, ex-Ministro da Educação, sempre lembra da preocupação do Presidente Lula em cumprir os acordos com Dona Canô. Ele brinca: “Ela era poderosa!”

 

Em 2004, quando houve a reunião do Conselho Universitário da UFBA para aprovar o desmembramento da Escola de Agronomia para a criação da UFRB, lá estava Dona Canô no Salão Nobre da UFBA. Um Conselheiro, que fazia oposição ao mandato do Reitor Naomar, me chamou à parte e brincou: “Vocês estão indo muito rápido! Uma instituição como a UFBA não pode ficar sem um curso de Agronomia! Eu ia pedir vista ao Processo, mas fique tranquilo, não vou fazer isso na frente de Dona Canô”.

Em 2006, quando o Presidente Lula veio lançar a UFRB, lá estava Dona Canô. Ela foi até Cachoeira, visitou as obras do Quarteirão Leite Alves com o Presidente, mas a família preferiu que ela não o acompanhasse até Cruz das Almas para não cansá-la demais.

E, por favor, não duvidem: Dona Canô, até o final, sempre teve a exata dimensão do que fazia. Em fevereiro de 2012, portanto, poucos meses antes dela partir, em visita a Santo Amaro, com uma delegação da UFRB, fomos convidados para tomar um suco com Dona Canô. Ela disse: “A universidade agora tem que vir para Santo Amaro. Uma universidade vai ser tão bom. Eu sempre me preocupo tanto com jovens, eles param de estudar, ficam sem emprego.” Exatamente o que tinha dito há nove anos.

Nessa última vez em que estive com ela, chegamos à casa, conduzidos por Rodrigo, um de seus filhos. Eu estava muito tímido e também preocupado em causar algum incômodo a uma senhora de 104 anos. Disse-lhe: “Benção, Dona Canô”. E ela disse, brincando, com um sorriso delicado e me deixando à vontade: “Meu filho eu abençoo tanta gente simples aqui em Santo Amaro, quanto mais um REI-TOR”.

Sua vida merece ser lembrada e celebrada!

Lembro que ao final dessa nossa última visita, escutei de uma professora: “Em meio a tantas coisas geniais que Caetano Veloso e Maria Bethânia fizeram, ainda acho que a maior obra-prima deles é Dona Canô.” Realmente, revelar para o Brasil o encanto e a sabedoria singular de uma mulher comum do Recôncavo é uma tarefa para gênios!

Um dia ela voltará numa “estrela colorida e brilhante, de uma estrela que virá numa velocidade estonteante” e, mais uma vez, “aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio“.

Felicidade é brinquedo que não tem!

Paulo Gabriel Soledade Nacif

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. ”  (Trecho do Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928).

 

O personagem foi inspirado em São Nicolau, arcebispo de Mira na Turquia, no século IV, mas foi somente em 1931, por meio de uma campanha publicitária da Coca-Cola, que o Papai Noel ganhou o aspecto mais próximo do que conhecemos.

É incrível constatar que em 1932, já no ano seguinte à campanha da Coca-Cola, um baiano de Teodoro Sampaio enfrenta o mito de Papai Noel produzindo uma pérola preciosa, única e inesquecível – “Boas Festas”. A música estrutura o poema ou é o texto que inspira a música?

Essa música do meu conterrâneo Assis Valente salva o meu Natal. Sempre sinto muito orgulho quando vejo que o Natal brasileiro, apesar do Bom Velhinho com todo o seu excesso de roupas, todo o seu consumismo, suas frases feitas, sua neve e seus pinheiros, floridos de hipocrisias, foi “antropofagado” – digerido pela genialidade de Assis Valente, baiano lá de Bom Jardim (antigo nome de Teodoro Sampaio), nas cabeceiras do Recôncavo, à época um distrito de Santo Amaro. É isso: acontece que eu sou baiano… Assis Valente engoliu, regurgitou e novamente remastigou o colonizador.

“Boas Festas” é uma música tipicamente brasileira, cheia de ironias e desafios escondidos numa falsa ingenuidade.

Veja que gênio!

Ele começa candidamente, mas eufórico, feliz:

“Anoiteceu

E o sino gemeu

E a gente ficou

Feliz a rezar”.

Rapidamente, ele aproveita o momento de submissão e candura e faz o seu pedido:

“Papai Noel, vê se você tem

A felicidade pra você me dar”.

Como nunca recebe o presente, Assis Valente entra com toda a ironia de quem conhece todos os sotaques da tristeza:

“Eu pensei que todo mundo

Fosse filho de Papai Noel

E assim felicidade

Eu pensei que fosse uma

Brincadeira de papel

Já faz tempo que eu pedi

Mas o meu Papai Noel não vem

Com certeza já morreu

Ou então felicidade

É brinquedo que não tem.”

Tudo isso numa música linda, cheia de ritmo, lirismo, tensões e antagonismos que penetra e embala o Natal de norte a sul ou, como diz John Lennon: Todo o natal – do enfermo e do são, do rico e do pobre, do branco e do negro, do amarelo e vermelho.

A música “Boas Festas” é uma ópera, uma peça de teatro, um livro, um filme e também uma série para uma dessas plataformas da era digital. Faz a gente imaginar mil pessoas, idosas, adultas, jovens e crianças tristes que aguardam pela visita de um Papai Noel que nunca chega. É um pouco a história de vidas como as nossas, nada heroicas, comuns, com frustrações no passado e à espera das que surgirão nas esquinas e becos por onde vamos caminhar. Felicidade é brinquedo que não tem!

Como o mundo é cheio de contradições, o conjunto “As Melindrosas” (1978), Simone (1995), Gaby Amarantos (2013) e até Milton Nascimento (2015) fazem o movimento inverso do pretendido por Assis Valente e não se envergonham de defender o Papai Noel da Coca-Cola: Transformam essa obra-prima numa monótona batida de carnaval, eliminando toda a complexidade da criação. Antropofagia reversa?

Assis Valente, depois de viver em Alagoinhas, Senhor do Bonfim e Salvador, mudou-se com 17 anos para o Rio de Janeiro. Lá foi protético, teve seus desenhos publicados em revistas, escreveu peças de teatro, mas foi como compositor que alcançou grande sucesso nas vozes de ícones como Carmem Miranda, Dorival Caymmi, Orlando Silva e Herivelton Martins.

A sua música “Brasil Pandeiro” dialoga à perfeição com “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Para essa gente bronzeada mostrar seu valor é necessário abrir a cortina do passado, tirar a mãe preta do cerrado. E botar o rei congo no congado.

Ele também compôs “Meu Moreno Fez Bobagem” e “Camisa Listrada”. Ainda hoje há imbecis para estranhar como Chico Buarque escreve letras de algumas músicas tão femininas, então, imagine como era na década de 1940 um compositor que escreveu: “Meu moreno fez bobagem / Maltratou meu pobre coração / Aproveitou a minha ausência / E botou mulher sambando no meu barracão / Quando eu penso que outra mulher / Requebrou pra meu moreno ver / Nem dá jeito de cantar /Dá vontade de chorar/ E de morrer”.

Enfrentando preconceito de cor, possivelmente tendo que explicar a sua orientação sexual, sempre com dificuldades de recolher os seus direitos autorais que hoje o transformariam num milionário e lidando com vícios como a cocaína, não é por acaso que Assis Valente é autor de expressões ainda populares no Brasil, como por exemplo nos versos: “Deixa estar jacaré/ Que o verão vai chegar/ Quero ver se a lagoa secar.”

A criatividade genial desse baiano o fez também um dos precursores das marchinhas juninas e já em 1933 ele compôs a música “Cai, cai, balão”, sempre com ironias tristes: “Eu também sou um balão / Vou subindo de mentira / No azul da ilusão / Meu amor foi a fogueira / Que bem cedo se apagou / Hoje vivo de saudade / É a cinza que ficou!”

Esse gênio da raça morreu no dia 06 de março de 1958, aos 47 anos. Num bilhete, deixou o último “verso”: “Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo. ”

É, Papai Noel: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.