No dia 01 de novembro de 1501, quando os navios da expedição portuguesa penetraram na maior baía do litoral que buscavam conhecer, o corpo de água que se impôs, pelas forças geológicas, nas entranhas das terras que o cercavam foi chamado de “Todos os Santos”. Antes, aquelas águas eram chamadas de Kirimurê, pelos Tupinambás. Começava ali uma nova estruturação sociocultural do Recôncavo, uma região que é estratégica para o entendimento do Brasil.
Já sugeri à UFRB e a representantes da sociedade baiana que o dia 01 de novembro fosse designado como “DIA DO RECÔNCAVO”. Ainda considero essa ideia relevante. Uma data para refletirmos tantos séculos da nossa construção sociocultural e que resulta na expressão do que somos e não somos no presente. É lamentável que o projeto do Instituto de Estudos Avançados do Recôncavo, apoiado, à época, inclusive pelo Governo Federal, não tenha prosperado.
Lembro de Gilberto Gil me orientando: “Reitor, sua missão em organizar a UFRB é muito importante para o nosso projeto de cultura: é impossível entender o Brasil, sem se entender a Bahia; é impossível entender a Bahia sem se entender o Recôncavo!
O termo Recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras em torno de qualquer baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização, à região que forma um arco em torno da Baía de Todos-os-Santos. Essa região se caracteriza não apenas pelas suas incríveis variáveis físico-naturais, mas, sobretudo, por sua história e dinâmica sociocultural.
É bastante conhecida a emergência do complexo canavieiro ao norte dessa Baía (nos solos localmente denominados massapês), associado, no sul do Recôncavo e ao norte de Salvador, à produção de gêneros alimentícios, madeiras e fumo. Nesse processo, os colonizadores portugueses dizimaram dezenas de aldeias tupinambás e fizeram do Recôncavo um dos principais destinos da diáspora africana. Aqui, as ações dos donos do poder encontraram infinitas formas de resistência por meio de rebeliões, fugas, negociações e redimensionamentos culturais, exercitados pelos povos dominados.
O Recôncavo produziu grandes riquezas. No entanto, a resistência às inovações está entre os motivos que determinaram um grave atraso na sua modernização socioeconômica. A modernidade no Recôncavo, inclusive em Salvador, só ocorreu com a exploração do petróleo a partir da década de 1950, quando aconteceram importantes mudanças nas relações de poder nessa sociedade. Todo esse processo ajuda a explicar o lugar do Recôncavo nas divisões do trabalho em escalas global e nacional e seus desdobramentos locais. É notável a similaridade entre alguns mapas do Recôncavo propostos desde o século XVIII até o presente. Nesses estudos, o Recôncavo forma um semicírculo (com cerca de 10.500 Km2), abrangendo o norte de Salvador até Mata de São João e Alagoinhas; a área de solos massapês, localizada ao norte da Baía; as terras baixas de Maragogipe a Jaguaripe; e as regiões mais elevadas de Cruz das Almas e Santo Antônio de Jesus.É extraordinária a permanência dos vínculos que determinam a existência dessa região. Contribuem para isso, o subespaço longamente elaborado e por muito tempo estável, a presença de Salvador e da Baía de Todos-os-Santos, e, como lembra o geógrafo Milton Santos (1926-2001), “as iconografias que mantém a ideia de região através da noção de territorialidade, que une indivíduos herdeiros de um pedaço de território”. Percorrendo o Recôncavo, é possível observar entre seus habitantes uma sensação de pertencimento à região, o reconhecimento de uma história comum e uma interessante referência a muitos hábitos e tradições. Evidentemente, tudo isso foi forjado “aos trancos e barrancos” – no sentido que Darcy Ribeiro emprestou ao termo. Assumir o conceito de Território de Identidade não pode significar o esquecimento do velho (e ainda tão atual) Recôncavo da Bahia.
Na segunda metade do século XX, o Recôncavo passou por muitas transformações. Mudanças da matriz de transportes criaram uma densa rede de estradas e redefiniram o protagonismo de determinados centros urbanos. A área mais próxima de Salvador se constituiu numa região metropolitana (não confundir com a Mesorregião Metropolitana de Salvador). A exploração de petróleo e a instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari definiram novos subespaços. O desenvolvimento de Feira de Santana estabeleceu sombreamentos de áreas de influências. Com tudo isso, houve uma redução da coerência funcional da região, mas não suficiente para diminuir territorialmente ou conceitualmente o Recôncavo. Certamente, valorizar o Recôncavo tem importância estratégica para aqueles que consideram relevante, como ensinou Milton Santos: “… pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que nos libere da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade”.