Às Professoras e professores de Lauro: Educadores do Brasil

                                                                                            “A única arma para melhorar o planeta é a Educação com ética. Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da pele, por sua origem, ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Nelson Mandela.

 

A professora e o professor da nossa rede são potentes alicerces que nos permitem acreditar que estamos construindo um processo educacional consistente, capaz de criar as bases para mudar a nossa cidade, a Bahia, o Brasil e o mundo para melhor. Mais do que nunca precisamos fortalecê-los e destacar sua imprescindível colaboração e seu constante protagonismo.

Há muitas lutas para lutar e obter sucesso. Luta pela valorização. Luta pela qualidade do ensino. Luta por uma cidade efetivamente educadora, com a participação de todos, na efetivação de uma estória de transformação. Não há como esperar que sem a compreensão do verdadeiro significado do papel dos professores sejamos capazes de ir até o topo, alcançando a UTOPIA. Não no seu sentido quixotesco, como muitos imaginam, mas no seu sentido radical, porque de raiz: chegar no ápice da potência humana, totalmente humanizada, como preconizava Nietzsche: HUMANO DEMASIADAMENTE HUMANO.

Demonstrando que a nossa homenagem não é apenas fruto da comemoração de um dia dedicado ao professor/professora, mas sim fruto de uma política sistemática de respeito e valorização do docente, a Prefeita Moema Gramacho tem demonstrado determinação em inaugurar um novo tempo na educação do nosso município, ao tomar medidas avançadas, se destacando dentre os gestores municipais brasileiros.

Nesse sentido, podemos destacar a concessão de contínuos reajustes superiores ao aumento do piso nacional salarial dos professores para toda categoria, o compromisso com as eleições diretas para diretor das unidades escolares, implementando de fato uma gestão democrática nas escolas, o efetivo desbloqueio dos processos administrativos, permitindo que os nossos professores tenham acesso real aos benefícios do seu plano de carreira, que até então não era efetivo na prática, a redefinição de uma política de formação continuada para os professores, além de ações que visam ativar as dimensões educativas dos diversos territórios de Lauro de Freitas, como se faz necessário em uma cidade educadora.

No bojo de uma educação com mais qualidade vale ressaltar três programas que buscam colocar, não só a rede municipal com competência para vivenciar os desafios da contemporaneidade, predominada pela fluidez, como também propiciar aos nossos docentes as ferramentas definidoras de um fazer diferenciado e condizente com o que se espera da educação e do educador: a) o Educadigital que permitirá que todas que as escolas de Lauro de Freitas tenham completo acesso ao contexto tecnológico do Século XXI, por meio de equipamentos e rede de dados que possibilitarão o uso de uma suíte de aplicativos de última geração, com instrumentos de educação presencial e à distância; b) a Educação Integral que permite aos nossos estudantes acesso cada vez maior a processos educacionais dinâmicos e diversos; e em breve, c) a Educação Continuada para trabalhadores da educação, por meio da qual Lauro de Freitas implantará um grande programa de formação para os seus servidores da área, permitindo que seja encaminhada uma transformação curricular com protagonismo de toda a comunidade educativa.

Todas essas iniciativas, aliadas à competência de nossos docentes, fartamente comprovada por meio de prêmios nacionais obtidos, conduzem-no a certeza de que todas as homenagens e louros são infinitamente menores do que é capaz nossa forma verbal de expressar o que efetivamente representam os professores e professoras de Lauro de Freitas.

Feliz Dia das Professoras!

Feliz Dia dos Professores!

 

Com estima,

Paulo Gabriel Soledade Nacif

Secretário Municipal de Educação

ESCOLA SEM MORDAÇA

PRONUNCIAMENTO DO SECRETÁRIO DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E INCLUSÃO NA AUDIÊNCIA PÚBLICA NA COMISSÃO DE EDUCAÇÃO PARA DISCUTIR A INCLUSÃO DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL NO PNE”. COMISSÃO DE EDUCAÇÃO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 11 DE NOVEMBRO DE 2015

 

Senhores Deputados, Senhores membros da Mesa, minhas Saudações a todas e todos, em nome do Ministro Aloísio Mercadante.

O Ministério da Educação segue integralmente o Plano Nacional de Educação, conforme aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidenta Dilma Rousseff. Vale ressaltar que o PNE estabelece a erradicação de todas as formas de discriminação, e, por isso, felizmente, e não poderia ser diferente, foi aprovado por unanimidade nesta casa.

No seu art. 2o são estabelecidas as diretrizes do PNE. No seu Inciso III estabelece a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação. Adicionalmente no anexo da Lei, o tema é abordado nas suas metas e estratégias. A erradicação de todas as formas de discriminação é explicitamente destacada nas estratégias das:

Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE.

Meta 3: universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento).

Meta 4: universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.

Desde a aprovação do PNE o Governo Federal vem atuando de maneira associada ao Congresso Nacional, Poder Judiciário, com os entes federados e a sociedade porque sabemos o quão importante é essa ação conjunta para que o PNE seja efetivamente implementado.

É importante lembrar que nesses 30 anos de redemocratização temos construído um sistema educacional que mais e mais toma a forma de uma estrutura de Estado, num regime de colaboração entre os entes federados, poderes legislativo, executivo, judiciário e sociedade. Essa estrutura forma uma engenharia institucional inédita no mundo. Esse complexo edifício institucional que dá forma e conteúdo à educação brasileira tem como o seu principal marco a Constituição de 1988. Assim, conquistamos uma educação para o exercício da cidadania: dialógica, plural, contextualizada, crítica e emancipatória.

Por exemplo, não é o Executivo Federal que escolhe unilateralmente o conteúdo dos materiais presentes no Plano Nacional de Livros Didáticos assim como não é Ministério da Educação que determina sozinho os cursos de formação continuada dos nossos professores em cuja atuação, existe aí, por exemplo, uma ação ativa dos estados e municípios e também das universidades – que desempenha papel estratégico nesse processo. O Executivo, evidentemente, atua na Coordenação dessas ações. Ainda como exemplo o Executivo tem um papel estratégico – participa ativamente do processo – mas não determina as diretrizes curriculares dos nossos cursos da educação básica ou superior.

Temos um regime de colaboração entre os entes federados, poderes, universidades, sociedade e órgãos associados cuja complexidade garante uma continuidade de ações no longo prazo. Tudo isso foi moldado por Leis estabelecidas pelo Congresso Nacional.

Como consta no requerimento dos Senhores Deputados questionamentos sobre manifestações realizadas por instâncias associadas ao Ministério da Educação – MEC, como a CONAE e FNE cabem explicar rapidamente seus papéis e vinculações.

O Conselho Nacional de Educação (CNE), a Conferência Nacional de Educação (CONAE) e Fórum Nacional de Educação (FNE) são órgãos vinculados, mas com capacidades de deliberações algumas vezes independentes.

Todos esses órgãos fazem parte do ordenamento jurídico da Educação Brasileira, constituídos a partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.

O atual Conselho Nacional de Educação-CNE, órgão colegiado integrante do Ministério da Educação, foi instituído pela Lei 9.131, de 25/11/95, com a finalidade de colaborar na formulação da Política Nacional de Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. A sua composição é estabelecida pelo Decreto Nº 3.295, de 15 de dezembro de 1999, que dispõe sobre os procedimentos para escolha e nomeação de membros das Câmaras que compõem o Conselho Nacional de Educação.

Nesse cenário, constata-se que o CNE é um órgão colegiado do MEC, e que dispõe da prerrogativa de emitir manifestações sobre questões relacionadas à educação, contudo as deliberações CNE para dispor de eficácia plena precisam ser homologadas pelo Ministro de Estado da Educação.

A Conferência Nacional de Educação (CONAE) é uma instância de Estado (não é um órgão do Governo), organizada com participação da sociedade civil, do governo (federal, estadual e municipal) e do parlamento brasileiro, que delibera com seus delegados, eleitos pelos seus segmentos educacionais e setores sociais, sobre Propostas para a Educação Nacional. A Lei Nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001 que estabeleceu Plano Nacional de Educação de 2001-2011 já previa a CONAE nas suas diretrizes. Ela ocorreu em 2010 e em 2014.

O Fórum Nacional da Educação é um órgão de Estado, criado pela CONAE 2010 e instituído pela Lei Federal nº 13.005/2014. Seus membros são indicados pelos órgãos que o compõe e seu coordenador eleito pelos pares.

Desde a consolidação da Constituição de 1988 aos dias atuais, o nosso Brasil tem desenvolvido uma trajetória de construção de direitos: avanços e consolidação da democracia. Conquistamos uma educação para o exercício da cidadania: dialógica, plural, contextualizada, crítica e emancipatória. Vale lembrar que a Constituição Federal do Brasil de 1988 estabelece:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996 estabelece que dentre os Princípios e Fins da Educação Nacional:

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III – Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

IV – Respeito à liberdade e apreço à tolerância;

Temos diversas diretrizes curriculares que estabelecem preocupações com a educação para os direitos humanos, a educação contra a discriminação e o preconceito.

Participação da Deputada Margarida Salomão na audiência pública.

Não desconhecemos que o Congresso Nacional decidiu suprimir quaisquer alusões a expressões como “gênero” e “orientação sexual” do PNE. Queremos crer que isto é resultado do cuidado dos Legisladores contra eventuais excessos nessa temática. Mas é certo que todos concordam que escola tem que ser acolhedora na diversidade de modos de ser que há no mundo, e isso inclui a diversidade religiosa, étnica, cultural, sexual geracional e de gênero. Todos esses assuntos devem ser discutidos à luz do conhecimento científico e de princípios éticos.

Como sempre destacou o Ex-ministro Renato Janine Ribeiro, é importante que a escola aborde o preconceito e a violência moral em todos os sentidos: o preconceito religioso, o preconceito por gênero, o preconceito por orientação sexual, por raça, por etnia, o preconceito decorrente da aparência, o preconceito decorrente da deficiência física. Todas as formas de preconceito. Não podemos admitir que nossas escolas sejam ambientes de violência moral. Estou certo de que nenhum de nós há de concordar com a violência e a humilhação praticados contra qualquer pessoa.

Abordar o preconceito em sala de aula, portanto, nada mais faz além de cumprir os objetivos da Constituição Federal, que pretende garantir um Brasil sem discriminação.

Em suma: orientar os professores a respeitar a diversidade dos adolescentes não significa estimular que os jovens sejam isso ou aquilo. O MEC não corrobora a ideia de estimular que jovens sejam desta ou daquela religião, deste ou daquele partido político ou que tenham esta ou aquela sexualidade. Qualquer professor que tentar fazer a cabeça dos alunos pode e deve ser denunciado. E a legislação existente dá conta disso.

Mas, quando um professor pede respeito pelas diferenças e estimula os estudantes a que se respeitem em sala de aula, ele cumpre o seu nobre papel de garantir uma sala de aula inclusiva e sem violência física ou moral.

Por fim, sugiro estimular o nosso espírito crítico no tocante a coisas que lemos na internet. A maioria é mentira. Coisas como “livro que o MEC aprovou estimula a homossexualidade”, ou qualquer coisa do tipo, com um mínimo de pesquisa se descobre que é mentira.

Um bom caminho para o equilíbrio nesse campo é o fortalecimento da presença da família nas escolas. Talvez esse seja o campo em que mais temos que avançar. Quanto maior a presença dos pais na Escola, mais controle social teremos do processo educativo, seja na dimensão de qualidade, seja na sua dimensão ética.

Sempre haverá uma área de sombreamento entre a escola e a família e cabe a elas, no contato permanente e fraterno, construir pontes. O MEC reafirma a completa concordância com o texto que estabelece como um dos objetivos do PNE a “erradicação de todas as formas de discriminação”.

 

O Título a Lula: A Sentença do Juiz e o Erro da Universidade

Paulo Gabriel Soledade Nacif

  “…nas scolas gerais do studo de lixboa…determjnando per o bacharel Ruy gonçalvez… o dicto doctor ouuese seu asento e quaesquer onrras no dicto studo por que ElRey nosso Senhor asi o auja por bem…”   

ata de 6 de novembro de 1512, da Universidade de Lisboa

A decisão do Juiz Evandro Reimão dos Reis, da 10ª Vara Cível da Justiça Federal na Bahia de suspender o ato administrativo que concedeu o Título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Lula entrará para a história como o mais grave atentado contra a autonomia universitária no território brasileiro nas primeiras décadas do século XXI. Isso certamente será debatido por muito tempo. Consultei estudiosos da instituição universitária de alguns países e tudo indica que aquela foi uma decisão sem precedentes nas democracias ocidentais.

O Juiz também determinou o deslocamento da Polícia Federal para a sede da universidade, com o objetivo de garantir o cumprimento de seu mandado e impedir a realização da solenidade de entrega do Título Honorífico ao seu destinatário. Considerando a possibilidade de que seu ato – essencialmente arbitrário – não fosse acatado, o magistrado lançou mão de medida coercitiva extrema, evocando a força para que ela estivesse “presente na data e local anunciados da entrega da honraria e, em caso de descumprimento desta decisão, adote as medidas cabíveis para sua observância”. Tal decisão não constrangeu apenas o Conselho Universitário da UFRB, mas a setores expressivos da sociedade brasileira de todo espectro ideológico.

Chama a atenção o fato de que o Magistrado fez tudo isso sem recorrer a uma prerrogativa muito utilizada na justiça: buscar informações sobre o processo junto à universidade primeiramente. Caso optasse por esse caminho, ele teria sido informado que o debate sobre a outorga do Título Honorífico ao ex-presidente Lula ocorre naquele Conselho desde 2007. Tivesse buscado informações sobre o que iria julgar, o faria tendo como norte de sua decisão uma sequência de fatos e elementos que autorizou a UFRB a exercer as prerrogativas da sua autonomia, ao conferir homenagens e honrarias a quem considerou merecedor delas, restando, vale enfatizar, sempre resguardados os limites dos seus procedimentos regimentais.

Tivesse interpelado a UFRB antes de decidir, o Juiz saberia que o então reitor (Presidente do Conselho Universitário da UFRB) ponderou à época do surgimento do assunto que a outorga do título Doutor Honoris Causa a Lula, na condição de Presidente da República, deveria ser encaminhada no futuro, pois o mais alto Signatário da Nação expressara em diversas ocasiões que não considerava adequada a possibilidade de ser homenageado por universidades brasileiras durante a vigência de seu mandato.

Seria importante que o Juiz realizasse o seu julgamento sabendo que a UFRB não é uma instituição que vive a instituir homenagens, pois, em doze anos de existência, apenas três vezes deliberou pela concessão do Título de Doutor Honoris Causa a alguém; que o conceito de Títulos Honoríficos da UFRB foi profundamente debatido pelos membros do Colendo Conselho Universitário e que esses senhores e senhoras possuem amplo domínio sobre o assunto, para muito além do senso comum; que para a outorga de tais honrarias a votação no Conselho Universitário é secreta, para evitar quaisquer pressões ou interferências sobre os Conselheiros.

O Magistrado poderia ainda ter tido acesso ao discurso do então Reitor da UFRB (Presidente do Conselho Universitário) na solenidade de outorga do primeiro Título de Doutor Honoris Causa a Dona Dalva do Samba:

“O Doutoramento Honoris Causa é uma prática de grande significado na vida acadêmica. De um lado o prestígio da universidade e o rigor da outorga enaltecem quem recebe e, por outro, a instituição também é enriquecida pelo mérito das personalidades, que, por meio do título, associam-se de forma permanente à sua comunidade acadêmica. Assim, mais que honrar o homenageado, este título deve ser concedido de forma que a Universidade se sinta honrada em concedê-lo.

Quero parabenizar o Centro de Artes Humanidades e Letras e o Conselho Universitário da UFRB por definirem com muita firmeza que estaríamos aqui hoje sem improvisações nem atalhos. Nesse sentido, agradeço sinceramente ao Conselho do Centro de Humanidades, Artes e Letras, por não abrir mão do sentido acadêmico dessa homenagem.

Aqui na UFRB as coisas não são perfeitas, temos muito a avançar. Mas temos como princípio sempre ir ao limite. Neste propósito, seguimos todos os formalismos, próprios do meio acadêmico, nessa homenagem a Doutora Dalva. Estamos aqui com toda dignidade que a UFRB e a nossa Doutora merecem.”

Enfim, uma simples consulta poderia ter evitado que ele considerasse que uma universidade, sempre tão digna no seu fazer acadêmico, poderia incorrer em “desvio de finalidade” quando, usando das prorrogativas de sua autonomia, definiu outorgar o Título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

O magistrado, mesmo numa decisão tão paradigmática, se absteve de considerar todas as dimensões presentes na Resolução do próprio Conselho Universitário da UFRB, que ele toma como base para sustentar, em grande parte, a sua decisão. Diz a sentença:

“[…] é perceptível que somente através de proposta justificada do Reitor ou do Conselho Diretor de Centro de Ensino da UFRB, os quais tem iniciativa privativa e exclusiva da proposição honorífica, segundo literal dicção da reproduzida norma administrativa plasmada no artigo 2º, inciso IV, da Resolução nº 006/2011, instaura-se o procedimento e pode ser concedido, após sufrágio qualificado de mais de dois terços dos membros do Conselho Universitário da universidade-ré, o título de doutor honoris causa.

Porém, a honraria foi conferida ao réu Luiz Inácio Lula da Silva por provocação do próprio Conselho Universitário, o qual também apreciou a proposição e a aprovou em hostil violação da regra administrativa antes transcrita, o que certamente também aparenta ladear a moralidade administrativa.”

Na verdade, hostil à Resolução foi a interpretação do Juiz. Seguindo a leitura da Resolução para além do Artigo 2º, encontraremos o Artigo 9º que, explicitamente, permite, em casos de competência do Conselho, a proposição de outorga do título, feita tanto pelo Presidente (Reitor) como por iniciativa de cinco membros do Conselho Universitário.  Ora, a outorga do Título de Doutor Honoris Causa é competência específica do Conselho Universitário, logo a aplicação do Artigo 9º também é direta e pertinente.  Inclusive, vale registrar adicionalmente, que o Reitor recebeu, acatou a proposição do Título Honorífico e pautou tempestivamente, enquanto Presidente do Conselho, a análise da matéria, demonstrando em todas as ocasiões claro acolhimento do ato quanto a seus procedimentos e se colocando, na prática, ele mesmo, como um proponente.

Vale lembrar que a nossa Constituição Federal de 1988 consagrou, pela primeira vez, o princípio da autonomia universitária plena – ela está definida no Artigo 207 da Carta Magna. Evidentemente que essa autonomia não faz da universidade um mini-estado dentro do País, mas deve ser percebida como um instrumento que visa a condução da universidade ao atendimento dos fins aos quais é destinada, não estando a instituição dispensada do cumprimento das normas mais gerais de probidade da administração pública. No entanto, registre-se que isso está muito longe de significar que a onipotência tácita dos Poderes permite tratar as universidades como uma autarquia qualquer.

A difícil relação do Conhecimento com os Poderes instituídos fez com que a luta pela conquista e manutenção da autonomia universitária tenha acompanhado a história dessa instituição ao longo dos séculos e em todos os confins da terra. A autonomia tem por objetivo proteger, ontem e hoje, a instituição universitária de ações do Rei, seja aquela que ocorreu em Lisboa em 1512 e está retratada na epígrafe desse texto, seja da decisão do Juiz em relação à UFRB em 2017. Na história das decisões sobre outorga de títulos, sempre há registro de tensões, ameaças, prisões, enforcamentos, guilhotinas e fogueiras. Nas democracias contemporâneas, essa tem sido uma prerrogativa inquestionável da universidade e não do Rei.  Em nenhuma época foi fácil para o Rei abrir mão desse poder, mas, ressalte-se, é a autonomia que permite que a universidade contribua tão decisivamente para o desenvolvimento das sociedades.

Na sua decisão, o Juiz expressa que o encaminhamento pelo Conselho Universitário da UFRB parece configurar desvio de finalidade revelador de ofensa à moralidade administrativa pois outorgado às vésperas de o laureado empreender caravana pelo Nordeste afora no denominado projeto de natureza político-partidária “Brasil em Movimento”.  Ele não levou em consideração que o Ato da UFRB em questão pudesse ser o simples reconhecimento da ampliação do acesso ao nível superior de populações do interior do País, realizado durante o governo do homenageado.

E, objetivamente, essa inegável judicialização da política não seria um desserviço à democracia brasileira? O Conselho Universitário da UFRB dependeria do tutoramento de um juiz ou de um vereador para fazer uso das prerrogativas que lhe conferem a autonomia prevista pela CF/88? Considerando o encaminhamento autônomo de cinco dos seus membros, os seus pares do Conselho Universitário, ponderaram as perdas e ganhos e tomaram uma decisão soberanamente. O encaminhamento contrário – a não aprovação do título também geraria repercussões. Num ou noutro caso (aprovação ou reprovação da proposição de honraria) a instituição jamais se furtou a arcar com as consequências e buscar explicar à sociedade os seus atos.

A democracia tem seus pesos e contrapesos e essa decisão da Justiça causou um estrago muito maior à democracia e ao tecido estatal brasileiro do que quaisquer consequências advindas da Cerimônia proibida. É como imaginar que para matar um inseto fosse necessário usar uma bomba atômica – a imposição da força sobre o legítimo exercício do direito produz efeitos ”radioativos” por muitos anos. A delicadeza do jogo democrático precisa ser aprendida pelos juízes do Brasil, pois a inobservância dela resulta sempre em fraturas de difícil reparação nas estruturas da própria democracia.

Adicionalmente, devemos explicitar que esse episódio deixa evidentes questões que a universidade brasileira insiste em não enfrentar. É necessário que se considere que a defesa da autonomia universitária deve significar o cultivo cotidiano desse princípio nas próprias instituições universitárias. Afinal, que oportunidade são dadas aos nossos estudantes para que eles vivenciem e estabeleçam esse princípio como algo a ser respeitado pelo resto das suas vidas? Se um egresso das universidades não considera a autonomia universitária, valor cultural tão caro para a civilização ocidental, precisamos nos perguntar se a universidade proporcionou a ele o desenvolvimento desse respeito.

É difícil cobrar que a sociedade entenda e defenda a autonomia universitária se não cultivamos valores mais amplos nas nossas instituições. Por isso, é sempre bom lembrar num momento como este de que o compromisso da Universidade deve ir além de preparar o que William Zinsser chamou de “bárbaros altamente qualificados”. Nosso compromisso é o de contribuir para a formação integral do ser humano. Os atuais cursos de graduação são orientados prioritariamente para a formação profissional, as diretrizes curriculares dos nossos cursos expressam uma intenção de desenvolver uma série de competências, habilidades e qualidades gerais, mas elas raramente são desenvolvidas de forma sistemática em currículos típicos.

A tendência dentro das universidades tem sido de privilegiar os conteúdos específicos – necessários, mas não suficientes – em detrimento da formação estruturante que o desenvolvimento dessas competências, habilidades e qualidades proporcionam. A própria formação geral nos nossos cursos tende a ser preterida também pelo privilégio aos conteúdos específicos. Como destacou Anísio Teixeira, de um modo geral, as ações das nossas universidades ainda são tímidas e pouco sistematizadas no sentido de alargar, na sua comunidade, a cultura geral recebida no nível secundário.

No dia 18 de agosto último, estive presente quando o ex-presidente Lula chegou à UFRB para agradecer a outorga do título, sem poder recebê-lo naquele momento. Era visível o constrangimento do Conselho Universitário e, mesmo de alguns membros da comunidade acadêmica que se colocaram contrários à outorga do título, mas que estavam ali em solidariedade à UFRB pela agressão sofrida. Naquele momento, lembrei-me de um episódio que aconteceu na Universidade de Salamanca, Espanha, em 12 de outubro de 1936, durante o Festival da Raça Espanhola, com a presença de nacionalistas, da mulher do general Francisco Franco e do general Millán Astray, fundador da Legião Estrangeira. Encontramos facilmente na rede mundial de computadores a descrição da cena, com pequenas variações.

Após ataques ao nacionalismo basco pelo professor Francisco Maldonado que o descreveu como “câncer da nação”, que precisava ser curado com o bisturi do fascismo, alguém soltou o grito de guerra da Legião Estrangeira: “!Viva la muerte!” Então o General Millan Astray deu o mesmo grito. O filósofo basco Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, levantou-se e, com sua voz baixa, rebateu:

“Todos vocês esperam as minhas palavras. Vocês me conhecem e sabem que sou incapaz de ficar em silêncio. Às vezes o silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como concordância. Quero comentar o discurso, se é que se pode chamá-lo assim, do professor Maldonado. Vamos deixar de lado a afronta pessoal implícita na explosão súbita de vitupérios contra os bascos e catalães. Eu mesmo, claro, nasci em Bilbao. O bispo, quer queira ou não, é catalão, de Barcelona. Bem agora ouvi um grito necrófilo e sem sentido: ‘Viva a morte!’ E eu, que passei a vida criando paradoxos, devo dizer-lhes, com autoridade de especialista, que este paradoxo estranhíssimo me é repulsivo. O general Milan-Astray é um inválido. Não é necessário dizer isso com um acento pejorativo pois é, de fato, um inválido de guerra. Cervantes também o foi. Mas extremos não servem como norma. Desgraçadamente na Espanha atual há demasiados mutilados. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar as normas da psicologia das massas. De um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem viril e completo apesar de suas mutilações, de um inválido que não tenha essa superioridade de espírito, é de se esperar que encontre um terrível alívio vendo multiplicar-se os mutilados ao seu redor. O general Millán-Astray deseja criar uma nova Espanha, criação negativa, sem dúvida, posto que a sua própria imagem.”

Irritado, o general gritou: “Muera la inteligência! Viva la muerte!” Falangistas sacaram pistolas e o guarda-costas de Millán Astray apontou sua submetralhadora para a cabeça de Unamuno. Mesmo assim, o filósofo reagiu: “Este é o templo do intelecto e sou eu o sumo sacerdote. É o senhor que profana este recinto sagrado. O senhor vencerá, porque tem força bruta mais que suficiente. Mas não convencerá. Pois, para convencer, precisará do que lhe falta: a razão e o direito em sua luta. Considero inútil exortar o senhor a pensar na Espanha”.

Os falangistas queriam linchá-lo, mas a presença da mulher de Franco conteve os agressores. Franco disse que o Filósofo deveria ter sido fuzilado. Isso não foi feito por causa da fama internacional deste e da reação causada no exterior pelo assassinato de Lorca. Mas Unamuno morreu seis semanas depois, deprimido e amaldiçoado como ‘vermelho’ e traidor por aqueles que considerava seus amigos.

Sabemos que Francisco Franco comandou a Espanha com punho de ferro por quase quarenta anos, se tornando um dos mais notórios ditadores da Europa ocidental. No entanto, após ele, a democracia foi conquistada e hoje o povo espanhol trata princípios como a democracia e a autonomia universitária como valores fundamentais daquela sociedade.

 

A Escola de Agronomia: Ascensão e queda de uma potência

Paulo Gabriel Soledade Nacif

A história da Escola de Agronomia da UFBA tem origem no Imperial Instituto Baiano de Agricultura (IIBA), criado em 1º de novembro de 1859 por D. Pedro II.  Primeiro, no gênero, da América do Sul, o IIBA gestou a Imperial Escola Agrícola da Bahia, inaugurada em São Bento das Lages, a 15 de fevereiro de 1877, numa área originalmente doada aos beneditinos em São Francisco do Conde por uma neta de Caramuru.

Ruínas da Imperial Escola Agrícola da Bahia, São Francisco do Conde, BA.

De 1889 a 1904, a Escola Agrícola esteve sob a administração da República que, nesse último ano, passou o domínio para o Estado da Bahia. Em 1943 o governador Landulfo Alves, engenheiro agrônomo, inaugurou a nova sede da Escola, numa área de 1.897 ha no município de Cruz das Almas. Essa área resultou da compra de um conjunto de pequenas e médias propriedades que só foram efetivamente escrituradas em nome do Governo Federal  em 2012, no primeiro Reitorado da UFRB.

Em 1968, a Escola de Agronomia foi federalizada, passando a integrar a UFBA. O processo de federalização foi traumático para a Escola de Agronomia. Há muito busco entender como esse verdadeiro desastre institucional pôde acontecer.

Tenho uma versão sobre a questão, fruto de leituras, vivências e longas conversas com personagens que acompanharam de perto a história. São pessoas como os professores da Escola de Agronomia Joelito Resende, Raimundo Fonseca,  Antonio José da Conceição, Moiseis Vaxmann, Zinaldo Figueiroa de Sena, José Maria Couto Sampaio, Alino Matta Santana, Archimar Bittencourt Baleeiro e outros. Alguns desses acompanharam esse processo desde a década de 1940.

A Bahia que emerge do pós-1930, à esquerda e à direita, cada uma sempre com as suas contradições, revela, nas décadas seguintes, lideranças com discursos associados a um autonomismo (reação das elites ao Getulismo), às vezes, contraditoriamente adesista e firmemente convencidas sobre a necessidade de encontrar respostas para o que viria ser chamado por Otávio Mangabeira de “enigma baiano”. No Jornal a Tarde de 30.01.1951 Mangabeira definiu-o: “Intrigava-me, desde muito, o que chamei o enigma baiano: porque razão a Bahia, cujas qualidades e riquezas eram, em geral, tão celebradas, se mantinha, todavia, em condições de progresso indiscutivelmente inferior ao que resultaria, em boa lógica, de semelhante conceito, assim tivesse ele a procedência que se lhe atribuía? ”

Integrantes dessas elites, Edgar Santos e Landulfo Alves são dois personagens que nos interessam nesse ensaio pelo protagonismo que tiveram na educação superior baiana e pelos encontros e desencontros históricos das instituições que eles criaram (a Escola Agrícola da Bahia e a Universidade Federal da Bahia). Contemporâneos, esses dois baianos conviveram em disputas e convergências por espaços políticos e visões de desenvolvimento.

Muito por conta desses dois personagens, entre a ascensão de Getúlio Vargas e o golpe militar de 1964, a Bahia experimentou um desenvolvimento cultural expressivo que projeta suas luzes ainda hoje e isso pode ser resumido na criação da Escola de Agronomia de Cruz das Almas em 1943 e na UFBA em 1946, sendo essa última com consequências bem maiores nesse processo.

Edgar Santos foi o fundador da UFBA e é bastante conhecido o seu papel na modernização cultural da Bahia por meio da construção daquela instituição soteropolitana.

Já Landulfo Alves teve um papel definidor na transferência e reinauguração da Escola de Agronomia em Cruz das Almas e suas ações estiveram na base da implantação de um sistema de ensino, pesquisa e extensão rural inovador e raro dentre os estados do Brasil, cujas influências podem ser percebidas ainda hoje.

Landulfo Alves de Almeida nasceu em Santo Antônio de Jesus (BA), no dia 4 de setembro de 1893. Entre seus irmãos, destacou-se Isaías Alves de Almeida, Secretário de Educação da Bahia (1938-1942) e diretor da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia (1942-1961).  Em 1914, formou-se em engenharia agronômica na Escola de Agricultura de São Bento das Lajes, em São Francisco do Conde (BA).

Mais tarde, nos Estados Unidos, fez cursos de especialização em zootecnia e frequentou o Agriculture and Mechanical College, no Texas. Landulfo Alves era diretor da Divisão de Fomento Animal do Ministério da Agricultura quando foi nomeado interventor federal na Bahia em 28 de março de 1938.

Ao tomar posse, o interventor declarou que a sua administração seria dedicada à agricultura e à educação. É evidente a influência do seu irmão, Isaías Alves. O sistema de ensino, pesquisa e extensão rural forjado sob a liderança de Landulfo Alves teve como sustentação a Escola de Agronomia por ele refundada. O historiador Luiz Henrique Tavares destacou o investimento de “amplos recursos para a construção de uma escola agrícola em substituição à de São Bento das Lages. Deveria ser uma escola-campo e possuir todas as condições para transmitir os conhecimentos da agronomia geminados à pesquisa de laboratório, à prática agrícola e à pecuária. Para realizá-la, a Secretaria de Agricultura comprou uma fazenda no município de Cruz das Almas e nela construiu prédios para a administração, salas de aulas e laboratórios, casas residenciais para professores, trabalhadores de apoio e estudantes e campos para a lavoura”.

A partir da Escola de Agronomia de Cruz das Almas tem-se o desenho de uma estrutura de apoio às ações agropecuárias no estado. Neste período, investiu na implantação de “fazendas experimentais”, destinadas a melhorar o plantel bovino para abate e para a produção de leite, na construção do primeiro aviário da Bahia, em Feira de Santana, além de pocilgas e outras instalações pecuárias espalhadas pelo estado. Construiu quatro núcleos coloniais e duas escolas rurais. Novos métodos agropecuários foram levados a dezenas de municípios. Auxiliado pelo Serviço de Colonização do Nordeste, fomentou a cultura do algodão, da mamona e do sisal, criando com essa finalidade uma estação experimental.

Nesse processo, estrutura-se no estado da Bahia um sistema estadual de ensino, pesquisa e extensão rural envolvendo organizações públicas e privadas, empresas estaduais e federais, cooperativas, e outras que faz com que o estado ingressasse em um patamar superior de desenvolvimento das ciências agrárias bem como de produção e diversificação agrícola.

Nessa dinâmica surgiram centros de pesquisa, fomento, assistência técnica, crédito e comercialização, por produto, como por exemplo, o ICB, Instituto de Cacau da Bahia, e do IBF, Instituto Baiano do Fumo, a CEPLAC – Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira. Isso levou a iniciativas de fortalecimento de infraestrutura das regiões produtoras e estações experimentais e laboratórios tendo como resultado um processo de inovação tecnológica sem precedentes na Bahia.

A Escola de Agronomia de Cruz das Almas por muitas décadas esteve na liderança de todo esse processo, notadamente entre as décadas de 1940 e 1980, período em que figurava sempre como uma referência das ciências agrárias no Brasil e no mundo tropical.

Esse sistema tornou-se âncora para o discurso autonomista dos governos estaduais e a Escola de Agronomia de Cruz das Almas ganha status de símbolo dos governadores, sendo usada como um contraponto ao sucesso da iniciativa federal representada pela UFBA, idealizada pela genialidade de Edgard Santos. Apesar de integrarem os mesmos ideais de modernização conservadora, as relações entre a Escola de Agronomia e a UFBA nunca foram orgânicas ou complementares. Havia uma distância diplomática, interesses pouco convergentes e um discreto desprezo recíproco.

Vale destacar que a elite soteropolitana no seu projeto de modernização conservadora apostava num desenvolvimento contemporâneo mais associado a Salvador e mantinha relações ambíguas com o interior. A necessidade de apoio dos poderes locais levava a íntimas relações com o coronelismo associado aos latifúndios, em grande parte improdutivos, e ao trabalho semiescravo.

Nesse aspecto, mesmo a modernização representada pela Escola de Agronomia denunciava as contradições de algumas dessas famílias aristocráticas soteropolitanas que buscavam reinventar a Bahia representada por  uma Salvador vanguardista, mas muitas vezes mantinham no interior do estado relações sociais e políticas bastante atrasadas.

Possivelmente havia a ideia de que era possível se construir um dinamismo tal que Salvador fosse capaz de dirigir e promover o desenvolvimento de todo o Estado. Mas, evidentemente, o máximo que se conseguiu foi algo como uma “Paris e o deserto francês”, título do famoso livro do geógrafo Jean-Francois Gravier no qual ele opôs a hegemonia e o dinamismo parisiense ao abandono do interior da França.

O dinamismo do sistema estadual de ciências agrárias, criado por Landulfo Alves, sofreu um duro golpe com a federalização da Escola de Agronomia de Cruz das Almas em 1967/1968. É possível afirmar que a forma como esse processo ocorreu foi, em realidade, a subordinação daquela instituição à UFBA, desejo alimentado há muito pela elite soteropolitana.

Na década de 1960 e, principalmente, após o Golpe de 1964, várias instituições públicas de ensino de ciências agrárias do Brasil passam por um processo de federalização e em sua imensa maioria tornaram-se autarquias diretamente ligadas ao Ministério da Educação e Cultura. A exceção mais conhecida foi a Escola de Agronomia de Cruz das Almas, incorporada à UFBA. Será coincidência? Como exemplos de instituições que foram transformadas em autarquias, temos: o Centro de Ciências Agrárias de Mossoró (RN) – transformada em autarquia federal em 1969; a Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG) que se transforma na UFV em 1969; a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) que foi federalizada em 1974; a Escola Superior de Agricultura de Lavras (ESAL) federalizada em 1963; a Faculdade de Ciências Agrárias do Pará – FCAP, 1972.

Lançamento da pedra fundamental da Escola Agronômica da Bahia, 1940.  Landulfo Alves é o segundo a partir da esquerda, com a mão no bolso

Em 1968 a UFBA já se constituía numa grande universidade – a obra de Edgard Santos era destacada, por exemplo em textos de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, mas sem nenhuma tradição de multicampia e sempre demonstrando, à época, pouco interesse por uma ação territorializada no interior da Bahia. A sua dinâmica cultural alimentava-se de maneira profundamente positiva pela sua íntima relação com Salvador. Por ironia do “Tempo” – esse senhor tão estranho, coube ao filho de Edgard Santos, Roberto Santos, então Reitor da UFBA, liderar o processo de incorporação da Escola de Agronomia à UFBA.

A forma como essa incorporação ocorreu teve consequências graves. Em pouco tempo, a Escola de Agronomia da UFBA já não tinha a pujança que exibiu até os anos de 1970. Para a Escola de Agronomia esse processo foi verdadeiramente catastrófico.

Detentora de dez por cento do município de Cruz das Almas (1.700 hectares), com amplos experimentos, jardins de germoplasmas (essa instituição, desde São Bento das Lages, foi responsável, por exemplo, pelas primeiras pesquisas no Brasil sobre soja, café, cacau, mandioca e eucalipto), relações internacionais, completa integração com o Instituto de Pesquisas Agropecuária do Leste – IPEAL (precursor da EMBRAPA) e com uma das melhores escolas de educação básica da Bahia (Centro Educacional Alberto Torres – CEAT), instalados no próprio campus, esse sistema nunca foi entendido pela UFBA.

Nesse processo, todos os servidores não docentes foram considerados como cargos em extinção e assim mantidos pelo Governo Estadual, e as suas substituições por contratações Federais, subordinaram-se às regras gerais das outras unidades acadêmicas da UFBA situadas em Salvador. As regras orçamentárias adotadas foram as mesmas dos outros cursos, assim como no caso da contratação de pessoal docente. Em termos gerais foram muito raras as exceções consideradas pela administração central da UFBA no tratamento da Escola de Agronomia. A UFBA insistiu em perceber apenas um curso onde existia em verdade um complexo sistema de ensino, pesquisa e extensão com ramificações para além do estado da Bahia.

Era impossível adequar a estrutura de uma instituição localizada a 150 km de distância de Salvador a um espelho de uma unidade no campus central, em termos de cargos de direção, orçamento, pessoal docente e pessoal não docente. Esse sistema começa a ruir desde então com a incapacidade dos novos padrões institucionais renovar os pactos para continuar, por exemplo, as positivas interações com o Instituto de Pesquisas Agropecuária do Leste – IPEAL, já em transição para a EMBRAPA e com o Centro Educacional Alberto Torres – CEAT. Quando chegou a década de 1980 na qual os quadros de pessoal em extinção aposentaram-se completamente, houve um vazio institucional sem precedentes e esse sistema desmoronou-se por ausência de recursos financeiros e de pessoal para continuar o gerenciamento do território com os seus vários projetos. O colapso do controle do território, por exemplo, gerou a situação de completo descontrole que desafia a geração atual de dirigentes da UFRB, assunto que eu abordo no final do presente ensaio.

Ao apontar para esses possíveis encaminhamentos institucionais equivocados vale registrar que eles ocorreram sob os auspícios da UFBA, mas também do Governo Federal, Governo Estadual, do conjunto de instituições que aqui chamamos de sistema estadual de ciências agrárias e da própria comunidade acadêmica da Escola de Agronomia.

Distante de Salvador, com pouca atenção dos dirigentes da UFBA, a Escola de Agronomia ficou à sua própria sorte e submetida, adicionalmente, a um provincianismo absurdo. Participante ativa  do direcionamento das ciências agrárias do Brasil entre 1877 e década de 1970 (com poucos intervalos de paralisação de atividades), no momento em que mais precisa se abrir para os novos paradigmas institucionais desenvolvidos, em grande medida, pelos seus egressos, a nossa escola perdeu o espírito do seu tempo, inclusive por sentir pouca necessidade institucional de manter os contatos culturais e as redes que, na maioria da vezes, integrava com destaque. Espero que a UFRB conheça bem essa história. Isso inclusive me anima a escrever esse ensaio. Como nos ensinou Edmund Burke, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

Cheia de si, orgulhosa do seu passado, considerando-se capaz de concorrer com o mundo, a Escola de Agronomia da UFBA não foi capaz de perceber o movimento, ironicamente, liderado no Brasil principalmente por muitos dos seus egressos.

Enviados em profusão ao exterior, notadamente aos EUA entre as décadas de 1960 e 1970, especialistas em ciências agrárias criaram um dinamismo científico e tecnológico em associação com o agronegócio que se modernizava no Brasil, mudando definitivamente as ciências agrárias do País. Essa é uma ironia da história: os egressos de Cruz das Almas ganharam o mundo  e deixaram a Escola de Agronomia da UFBA definitivamente ultrapassada. Lembro que quando cheguei em 1985 para estudar nessa escola ainda havia uma imagem de que você não precisava ir a nenhum lugar para aprender mais: Cruz das Almas formava melhor que qualquer outro centro de ensino do mundo. Considero esse período como um ponto de corte, até essa época a Escola de Agronomia de Cruz das Almas ainda aparecia bem colocada em todos os rankings sobre centros de formação superior em ciências agrárias dos trópicos. Depois dessa época ela perde a hegemonia definitivamente para os centros de ensino do sul/sudeste do País.

A década seguinte (1990) consolida os processos de avaliação do ensino superior, tanto  da pós-graduação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES quanto  da graduação, pelo INEP, justamente no período de maior crise da Escola de Agronomia de Cruz das Almas. O curso de engenharia agronômica da UFBA apresentou uma série de insucessos desde o ano de 2000, quando o processo de avaliação de cursos de ciências agrárias foi instituído pelo MEC e ocorria por meio do Exame Nacional de Cursos (Provão): Ano 2000 – conceito C; Ano 2001 – conceito C; Ano 2002 – conceito C; Ano 2003 – conceito E. Por fim, em 2007, já como curso da UFRB, quando incluído no ENADE, o referido curso obteve o conceito 1, gerando a primeira crise que eu tive que administrar na UFRB que nascia. Com agronomia sendo o único curso avaliado da UFRB isso levou automaticamente a um IGC 1,0 da universidade recém-criada. Isso foi explorado ao máximo pelas forças conservadoras contrárias a expansão do ensino superior gratuito no Brasil e o Reitor da UFRB começou a sua gestão na berlinda, sob máxima pressão do MEC.

Felizmente assistimos a um novo ressurgir da força acadêmica das ciências agrárias do Recôncavo nessa segunda década do século XXI. Sem dúvidas, a área das ciências agrárias  foi muito beneficiada pela criação da UFRB e volta a ter a dinâmica científica e formativa do passado. Com a UFRB foram criados mais seis cursos graduação na área de ciências agrárias (Engenharia Florestal, Engenharia de Pesca, Medicina Veterinária, Tecnologia em Agroecologia, Tecnologia em Gestão de Cooperativas e Zootecnia) e o processo de expansão da pós-graduação é contínuo, atualmente nesse campo a UFRB apresenta oito mestrados e dois doutorados.

Desse modo, macro decisões institucionais equivocadas (federalização subalterna e indiferente) e provincianismo, levaram a escola ao fundo do poço. No dia 14 de março de 2003, trinta e cinco anos após a sua incorporação pela UFBA, assumi o cargo de Diretor da Escola de Agronomia e àquela época, tinha plena consciência dessa história e dos desafios que tinha pela frente.

Vilas, comunidades, bairros, assentamentos, quilombos, tudo isso hoje faz parte do campus de Cruz das Almas: O crescimento desordenado e a fluidez da presença do Estado (município, estado e governo federal) na regulação do uso do solo e oferecimento de serviços públicos geraram um vazio institucional que submete uma parte significativa do território do campus a vários conflitos de interesses. O campus abriga cerca de sete mil posseiros rurais e urbanos (cerca de dez por cento da população de Cruz das Almas).

Nesses últimos anos tivemos muitas conquistas, conseguimos a regularização fundiária que teve que ocorrer via uma Lei na Assembleia Legislativa, sancionada pelo Governador Jaques Wagner e  conseguimos adquirir uma área e constituir um assentamento, deslocando uma pequena parte da comunidade para lá. Tudo isso graças ao dedicado empenho do professor Geraldo Costa, que sofreu sempre críticas justamente por buscar lançar luzes ao problema – infelizmente há quem considere que não reconhecer o problema fará com que ele desapareça.

Promovi estudos, reuniões, diálogos, propostas. Conseguimos a regularização da área após 60 anos de descasos. Acionei todas as autoridades possíveis sobre a gravidade do tema. Só não me dirigi ao Papa.  Lembro que auditores da Controladoria Geral da União – CGU, me disseram que jamais aceitariam ser dirigente de uma instituição com um problema tão grande.

Não tenho dúvidas que resolver essa questão é crucial para o futuro da UFRB e deve estar no centro do interesse do campus de Cruz das Almas nos próximos anos. Sem uma intensa e contínua mobilização, envolvendo toda a comunidade, dirigentes, Munícipio, Estado e Governo Federal não iremos longe.

Para ficar numa expressão das ciências agrárias, uso como analogia a  “Lei do Mínimo”. Esse fator – a ocupação desordenada do campus de Cruz das Almas, possivelmente  será o que mais limitará o desenvolvimento dos Centros aqui instalados nos próximos anos. Ele afeta a circulação da comunidade acadêmica, a segurança das pessoas e do patrimônio científico e tecnológico, cria tensões permanentes. Precisamos nos preocupar prioritariamente com essa questão. É necessário estabelecer limites e relações de convivência com a comunidade no nosso entorno, criando um processo de afiliação e respeito mútuo.

A “Lei de Liebig” (Justus von Liebig – 1808-1873), também conhecida por “Lei do Mínimo” é um princípio utilizado na agricultura que estabelece que o desenvolvimento de uma planta será limitado por aquele nutriente deficitário, mesmo que todos os outros elementos ou fatores estejam presentes em quantidades adequadas. Alguém duvida dessa assertiva?

 

Em sequência as fotos retratam a força institucional da Escola de Agronomia no período em que pertencia ao Governo Estadual e logo abaixo num período após a federalização. A última imagem é uma foto do químico Alemão Justus von Liebig, autor da Lei do Mínimo, básica em todo curso introdutório sobre fertilidade do solo.

UFRB, treze anos: “E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo”

Paulo Gabriel Soledade Nacif

O ano de 2022 marca o bicentenário da independência do Brasil e é certo que esse marco, principalmente para os baianos – mas não só para eles, se estende e tem o seu ápice em 02 de julho de 2023, data do bicentenário da expulsão  das forças  portuguesas da Bahia, último bastião dos colonizadores. É consenso que sem essa ação dos baianos, notadamente do Recôncavo, o Brasil tenderia a se desintegrar em vários países, como ocorreu com a América Espanhola. É, portanto, um absurdo que o senhor Michel Temer tenha expedido, em 06 de setembro de 2016, um decreto que Institui a “Comissão Interministerial Brasil 200 Anos” para organizar o bicentenário da independência do Brasil e colocado como data para o encerramento dos trabalhos dessa comissão 01 de março de 2023, demonstrando descaso ou desconhecimento com a história do povo brasileiro.

Essa ação do Governo Federal não pode passar despercebida pelo povo do Recôncavo e da Bahia. Até o momento não vimos nenhuma ação das instituições e movimentos sociais contra esse ato que simbolicamente nos exclui das comemorações oficiais da independência do Brasil – ao menos naquilo que é mais caro para nós.

Começo esse texto com esse fato, porque me parece que isso retrata bem o momento em que a UFRB, maior conquista do povo do Recôncavo nesse século, completa treze anos ( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11151.htm ). Um momento em que estamos nos movimentando timidamente frente ao golpe e seus múltiplos desdobramentos.

Recentemente participei, em Santo Antônio de Jesus, de um grande ato político com as principais lideranças políticas da Bahia e do Recôncavo e me chamou a atenção o fato de que a UFRB não foi citada uma única vez pelas principais forças políticas presentes – justamente aquelas que estiveram ao nosso lado na conquista e consolidação da universidade. É certo que vivemos um momento em que os políticos se colocam distantes dos debates culturais e preferem uma excessiva ênfase na infraestrutura física, mas será que só isso explica esse silêncio?

No dia  25 de junho de 1822, reunidos na Câmara Municipal de Cachoeira, lideranças do Recôncavo anunciam o resultado da consulta feita ao povo: se concordava que se proclamasse dom Pedro de Alcântara regente constitucional e defensor perpétuo do Brasil. Mesmo sob ameaça da armada portuguesa, fundeada no Rio Paraguaçu, a resposta foi “Sim!”. Por esse ato Cachoeira recebeu o Título de “Cidade Heroica”, por meio da Lei Provincial no. 43 de 13 de março de 1837. Por uma ação do Governador Jaques Wagner e por grande esforço do historiador Ubiratan Castro e da Senadora Lídice da Mata,  está prevista na Lei 10.695/07,  que em 25 de junho a sede do governo da Bahia seja transferida para Cachoeira, por 24 horas. Durante seus primeiros anos essa data passou a ser  ponto de confluência das forças culturais e políticas de toda a Bahia e do Brasil.  Hoje, 25 de junho em Cachoeira está voltando a ser uma data quase municipal.

Esses exemplos estão aqui porque por tudo que somos e pelo tamanho que atingimos precisamos nos colocar em posição central nessa discussão. Não podemos nos abster de liderar institucionalmente os grandes debates sobre o Recôncavo sob pena de respondermos historicamente por essa omissão.

Como silenciar sobre a paralisação do Estaleiro de Maragogipe? Qual a nossa posição sobre a Ponte Salvador-Itaparica e a duplicação da rodovia Bom Despacho/Santo Antônio de Jesus? Desejamos a federalização do hospital regional de SAJ? Quais os impactos da reforma da educação básica e da BNCC nas nossas escolas? Como está o “currículo Recôncavo” nessas escolas? Qual o nosso papel na salvaguarda do patrimônio material e imaterial do Recôncavo? São questões que uma universidade que se autodenomina imbricada no Recôncavo não pode se abster. E, vale lembrar aos pragmáticos de plantão, essas ações podem ser as fontes de recursos que precisamos principalmente em momentos de crises.

Lembro que discutimos a criação de uma Agência de Desenvolvimento do Recôncavo, como uma ação complementar que permitiria à UFRB se constituir mais e mais numa “multiversidade”, justamente para promover estudos e propostas de políticas públicas sobre questões como essas. O apoio de ministérios como o da Cultura e Transportes e a Petrobrás a esse projeto de Agência de Desenvolvimento contribuiu para que o MEC, inclusive, disponibilizasse mais cargos de direção para a UFRB em relação às outras instituições criadas no mesmo período que nós. Com o tempo, estabelecemos outras prioridades e desistimos desse caminho.

Somos uma liderança consolidada e reconhecida pelos pares para estabelecer instrumentos capazes de congregar a UFBA, a UNEB, a UNILAB, o IFBA, o IFBAIANO e a UEFS em torno de projetos para o Recôncavo por meio de propostas como essa Agência que ficou no meio do caminho. São sete instituições públicas de ensino superior no entorno da baía que por muito tempo foi o centro real do Império Português. Excluindo-se Salvador, essas instituições possuem quinze campi nessa região histórica e é razoável considerar que a UFRB deve se responsabilizar pela articulação entre elas para o desenvolvimento de ações conjuntas sobre o Recôncavo.

Esse sentimento do Recôncavo como um lugar especial, de ancestralidade, da diversidade cultural, da “pedra pisada de preto, luso, banto, sudanesa”, do lugar do povo que efetivamente construiu o Brasil “e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”, não pode se esvair do nosso projeto institucional. Assumimos desde sempre um lugar de uma universidade regional, mas estamos nos distanciando dos  exemplos institucionais desses modelos de universidade. O nosso projeto civilizatório precisa ter uma base local e isso precisa ser retratado em ações institucionais profundas.

Não devemos nos conformar, como em muitas universidades, em uma estrutura que deixa esses esforços, de forma relativamente dispersa, aos seus professores, técnicos-administrativos e estudantes, relegando às instâncias coletivas superiores um papel secundário e, portanto, incapazes de articular essas ações.

Há pouco tempo, no início da nossa história, conseguimos contaminar as instâncias de poder de amplo espectro ideológico sobre o papel estratégico que poderíamos desempenhar no Recôncavo e a nossa existência passou a ser a garantia para inúmeras ações nesse território. Precisamos assumir mais e mais essa posição e não nos afastar dela: O nosso desafio tem que ser a busca pela transformação radical do nosso lugar, assumindo que o local protópico criado e transformado poderá servir de inspiração para a transformação em outros locais.

Fizemos e continuamos fazendo muito, mas precisamos assumir que institucionalmente precisamos fazer mais. Esse é o nosso compromisso pétreo com o povo do Recôncavo, tomado no nosso projeto constitutivo como o território de aprendizagem da universidade que nascia. Sem isso, por mais que façamos, será inexorável que se consolide um efetivo desencantamento do Recôncavo com a nossa instituição. Precisamos evitar que isso aconteça reinventando a nossa relação com esse território.

Lembro que certa vez, reunido com Gilberto Gil e Dona Canô em Santo Amaro, ele me disse: “não se entende o Brasil sem se entender a Bahia, não se entende a Bahia sem se entender o Recôncavo, logo, para entender o Brasil é necessário entender o Recôncavo.” Se Gil está certo, e eu aposto que ele está, precisamos nos colocar na posição de quem tem como trabalho traduzir o Recôncavo para todos os que querem entender o Brasil.  Precisamos dar exemplo de como a luta contra o retrocesso sociopolítico e cultural pode ser exercida dentro de uma universidade cujo sonho de existência foi o mais contra-hegemônico em toda a história do Brasil, justamente por ela estar aqui e carregar o nome da sua cara, o nome da sua carne: Federal do Recôncavo!

LAURO DE FREITAS CONTRACORRENTE: EDUCAÇÃO E UNIVERÃO

Paulo Gabriel Nacif

A prefeitura de Lauro de Freitas definiu por discutir uma nova perspectiva para o verão do Brasil e propôs a realização de um programa de universidade de verão, articulando todas as suas secretarias e instituições públicas do Brasil. É assim que de 15 a 21 de janeiro cerca de duzentos docentes, estudantes e técnicos de instituições públicas de educação, ciência e cultura do Brasil desenvolverão mais de 130 atividades em todo o território desse município, ação inédita no Brasil. Todas as atividades são gratuitas e esses profissionais não cobraram por suas participações. Participam dessas atividades profissionais ligados a universidades públicas, SBPC, Secretarias do Estado, ONG´s, professores e técnicos da rede municipal de Lauro de Freitas.

Os problemas da educação de Lauro de Freitas não estarão resolvidos com a realização da UNIVERÃO – nunca foi esse o objetivo desse programa, mas é certo que os debates e a sua própria realização apontam a vontade política de colocar, cada vez mais, a educação, como central na vida da nossa comunidade. Colocar a educação em evidência faz parte da estratégia para encontrar caminhos coletivos para a sua evolução.

Ao contrário do que propagam alguns, a UNVERÃO foi organizada com grande participação das instituições parceiras e não demandou esforços concentrados da equipe da educação básica do município. Recebemos esses apoiadores de todo o Brasil como um presente dos que querem apoiar a educação de um lugar tão carente como é Lauro. Há uma minoria que considera essas pessoas intrusas e desterritorializadas, mas essa não é a posição da imensa maioria do povo Laurofreitense.

Afinal, o que uma Prefeita que navegando contracorrente de uma área metropolitana que respira festas, deseja com uma atividade tão diferenciada? O que faz um político associar recursos tradicionalmente vinculados a outras áreas para financiar uma atividade como a UNIVERÃO? Há quem considere que essa liderança e seus assessores estão equivocados, atrasados. Numa época em que todos se voltam para atividades festivas cada vez mais descontextualizadas e pasteurizadas, no momento em que a exploração da cultura do estupro ganha o máximo de destaque, num período em que a política é feita com base em pesquisas do IBOPE, para alguns fica a sensação de que o grupo político que lidera a prefeitura de Lauro de Freitas caminha contracorrente ao propor algo tão diferenciado.

Felizmente assistimos a esse debate: Imagine se Lauro definisse por realizar uma grande grade de shows como todos os seus vizinhos? Ninguém questionaria, como nunca questionou! Num período de mudanças de paradigmas precisamos de lideranças que não busquem apenas ser ressonância da média do pensamento das bases, como vemos nas políticas sindicais e partidárias. Precisamos de lideranças capazes de criar o novo, indo contracorrente.

Acreditamos que a Univerão é um projeto genuíno que foi criado em Lauro para consolidar-se a longo prazo e como repetimos diversas vezes nas conversas com os trabalhadores da educação, nossa meta é que ele seja construído cada vez mais por dentro da nossa rede de educação básica.

É por iniciativas como essas que a Prefeita Moema Gramacho se destaca como uma das principais lideranças políticas do Brasil. A vontade de priorizar a educação no seu Governo vai muito além da UNIVERÃO. Vale lembrar, os professores de Lauro de Freitas receberam em 2017 um dos maiores reajustes dentre os municípios de todo o Brasil. Realizamos recentemente uma licitação para a manutenção das escolas e o início das aulas em 2018 ocorrerá em condições muito superiores a de 2017. E, é certo, cada ano melhoraremos mais.

Que a Prefeita Moema tenha força para continuar indo contracorrente, afinal nada mais necessário no mundo de hoje do que lideranças autônomas e que nos apontem caminhos novos e, nesse sentido, Lauro de Freitas tem muito que se orgulhar.

LAURO DE FREITAS CONTRACORRENTE: EDUCAÇÃO E UNIVERÃO

Paulo Gabriel Nacif

A prefeitura de Lauro de Freitas definiu por discutir uma nova perspectiva para o verão do Brasil e propôs a realização de um programa de universidade de verão, articulando todas as suas secretarias e instituições públicas do Brasil. É assim que de 15 a 21 de janeiro cerca de duzentos docentes, estudantes e técnicos de instituições públicas de educação, ciência e cultura do Brasil desenvolverão mais de 130 atividades em todo o território desse município, ação inédita no Brasil. Todas as atividades são gratuitas e esses profissionais não cobraram por suas participações. Participam dessas atividades profissionais ligados a universidades públicas, SBPC, Secretarias do Estado, ONG´s, professores e técnicos da rede municipal de Lauro de Freitas.

Os problemas da educação de Lauro de Freitas não estarão resolvidos com a realização da UNIVERÃO – nunca foi esse o objetivo desse programa, mas é certo que os debates e a sua própria realização apontam a vontade política de colocar, cada vez mais, a educação, como central na vida da nossa comunidade. Colocar a educação em evidência faz parte da estratégia para encontrar caminhos coletivos para a sua evolução.

Ao contrário do que propagam alguns, a UNVERÃO foi organizada com grande participação das instituições parceiras e não demandou esforços concentrados da equipe da educação básica do município. Recebemos esses apoiadores de todo o Brasil como um presente dos que querem apoiar a educação de um lugar tão carente como é Lauro. Há uma minoria que considera essas pessoas intrusas e desterritorializadas, mas essa não é a posição da imensa maioria do povo Laurofreitense.

Afinal, o que uma Prefeita que navegando contracorrente de uma área metropolitana que respira festas, deseja com uma atividade tão diferenciada? O que faz um político associar recursos tradicionalmente vinculados a outras áreas para financiar uma atividade como a UNIVERÃO? Há quem considere que essa liderança e seus assessores estão equivocados, atrasados. Numa época em que todos se voltam para atividades festivas cada vez mais descontextualizadas e pasteurizadas, no momento em que a exploração da cultura do estupro ganha o máximo de destaque, num período em que a política é feita com base em pesquisas do IBOPE, para alguns fica a sensação de que o grupo político que lidera a prefeitura de Lauro de Freitas caminha contracorrente ao propor algo tão diferenciado.

Felizmente assistimos a esse debate: Imagine se Lauro definisse por realizar uma grande grade de shows como todos os seus vizinhos? Ninguém questionaria, como nunca questionou! Num período de mudanças de paradigmas precisamos de lideranças que não busquem apenas ser ressonância da média do pensamento das bases, como vemos nas políticas sindicais e partidárias. Precisamos de lideranças capazes de criar o novo, indo contracorrente.

Acreditamos que a Univerão é um projeto genuíno que foi criado em Lauro para consolidar-se a longo prazo e como repetimos diversas vezes nas conversas com os trabalhadores da educação, nossa meta é que ele seja construído cada vez mais por dentro da nossa rede de educação básica.

É por iniciativas como essas que a Prefeita Moema Gramacho se destaca como uma das principais lideranças políticas do Brasil. A vontade de priorizar a educação no seu Governo vai muito além da UNIVERÃO. Vale lembrar, os professores de Lauro de Freitas receberam em 2017 um dos maiores reajustes dentre os municípios de todo o Brasil. Realizamos recentemente uma licitação para a manutenção das escolas e o início das aulas em 2018 ocorrerá em condições muito superiores a de 2017. E, é certo, cada ano melhoraremos mais.

Que a Prefeita Moema tenha força para continuar indo contracorrente, afinal nada mais necessário no mundo de hoje do que lideranças autônomas e que nos apontem caminhos novos e, nesse sentido, Lauro de Freitas tem muito que se orgulhar.

Descolonização e Viver Bem são conceitos que estão intrinsecamente ligados.

Entrevista de Katu Arkonada, por email, foi concedida à IHU On-Line.

A busca por uma “vida em plenitude” impulsionou as populações indígenas que originariamente viviam no território latino-americano. Uma vida, segundo Katu Arkonada, pesquisador e analista do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Ceadesc, da Bolívia, “em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra”.

Por isso, o Sumak Kawsay, ou Bem-Viver, pode ser considerado um princípio ético-moral que nos foi legado pelos índios andinos, mas que encontra expressões próprias nas demais comunidades indígenas. Hoje, segundo Arkonada, surgem novas construções híbridas entre conceitos milenares da cosmovisão indígena, como o Bem-Viver, e conceitos centenários, ocidentais e modernos, como a ética ou a moral.

Assim, justamente no momento em que o mundo ocidental vive uma crise profunda, “uma crise de vida e de modelo estrutural e de civilização”, defende Arkonada, vê-se o Bem-Viver como um novo paradigma que pode nos ajudar a sair do caos em que vivemos. Mas hoje em dia, explica, não se pode dissociar este modo de vida de conceitos como descolonização (do poder e do saber) e desmercantilização da vida.
Por outro lado, o Bem-Viver nos convida a “sair da dicotomia entre ser humano e natureza”, diz Arkonada. Ou seja: “despertar para uma consciência de que somos filhos da Mãe Terra, da Pachamama, e tomar consciência de que somos parte dela, de que dela viemos e com ela nos complementamos”. É um estilo de vida que nos ensina “não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos”, resume.

Katu Arkonada é basco, nascido no território sob a administração/colonização espanhola, e vive hoje na Bolívia, depois de ter vivido durante meses em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, trabalhando na coordenação do Fórum Social Mundial. É pesquisador e analista do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Ceadesc, em Cochabamba, na Bolívia. Colaborou com a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas – Caoi na construção da Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidades Indígenas, realizada em Puno, Lago Titicaca, no Peru. Atualmente colabora com o Vice-Ministério de Planejamento Estratégico do Estado da Bolívia na construção de indicadores de Bem Viver para os projetos de desenvolvimento.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Sumak Kawsay (quéchua equatoriano) ou Suma qamaña(aimará boliviano) expressam a ideia de uma vida melhor, ou Bem-Viver. Quais são os aspectos centrais desse conceito indígena?

Katu Arkonada – Em primeiro lugar, não se trata de viver melhor. Ao menos não dentro dos padrões ocidentais, em que o viver melhor equipara-se a ter mais. Em todo caso, é necessário abordar a cosmovisão aimará ou quéchua para compreender ou, pelo menos, aproximar-se da compreensão do significado profundo dos termos.

Em aimará, Suma é traduzido como algo muito bom, excelente, plenitude. E Qamañacomo conviver, viver em definitivo, de modo que o termo Suma Qamaña poderia ser traduzido mais aproximadamente como “vida em plenitude”, e uma tradução similar pode ser feita do termo quéchua Sumak Kawsay.

Quando se fala de vida em plenitude, está se fazendo uma referência a viver em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra. Em última instância, saber conviver com tudo o que nos rodeia, com a comunidade.

IHU On-Line – A Bolívia e o Equador incorporaram em suas Constituições o princípio do Bem-Viver. O que significa o resgate dessa ideia no atual momento político e histórico da América Latina?

Katu Arkonada – É muito interessante que as Constituições do Equador e da Bolívia, derivadas das assembleias constituintes e aprovadas no final de 2008 e início de 2009, respectivamente, introduzam os princípios do Bem-Viver e do Viver Bem em seus textos.

No caso do Estado Plurinacional da Bolívia, a nova Constituição Política do Estado já o introduz tanto no seu preâmbulo, quanto no segundo capítulo, em que fala sobre os princípios, valores e objetivos do Estado, assumindo-o como um princípio ético-moral. Também é muito interessante a construção de formas híbridas entre conceitos milenares da cosmovisão indígena, como o Suma Qamaña, e conceitos centenários, ocidentais e modernos como a ética ou a moral. Da mesma forma, fala-se também de Viver Bem nos artigos referentes à educação ou quando se determina a estrutura e a organização econômica do Estado.

O resgate da ideia também deve ser entendido em seu contexto. Na realidade, as formas de vida baseadas no Viver Bem têm uma tradição milenar. Na verdade, agora, alguns ocidentais, humildemente e depois de ter convivido e de ter se aproximado dessa forma de pensar e de viver, começaram a se atrever a recolher, sistematizar, traduzir e plasmar no papel uma tradição de pensamento que, até poucos anos atrás, havia sido fundamentalmente de transmissão oral, para que, a partir do pensamento ocidental, possa-se entender uma lógica oriental e milenar.

Em todo caso, no momento em que o mundo ocidental vive uma crise profunda – na realidade, produto de múltiplas e profundas crises, crise financeira, social, política, climática, alimentícia… e, no fundo, uma crise de vida, e de modelo estrutural e de civilização –, é nesse momento em que se vê o Viver Bem como um novo paradigma que pode nos ajudar a sair do caos em que vivemos.

E, precisamente neste momento, no bicentenário em que a maioria dos países latino-americanos estão celebrando ou vão celebrar a independência das colônias, a aproximação a esse conceito ganha mais importância. Porque, mesmo que, há 200 anos, tenha havido uma independência e foram formados os novos Estados-nação latino-americanos, na realidade, persistiram até hoje as formas coloniais de estruturação do Estado e de dominação de uma minoria, no caso da Bolívia mestiça e crioula, sobre uma maioria indígena. Por isso, hoje em dia, não se pode dissociar o Viver Bem, como conceito, de outros, como o da descolonização.

IHU On-Line – Você diz que “não é possível entender um verdadeiro processo descolonizador sem o Viver Bem”. Sobre que fundamentos e como se desenvolveria essa descolonização?

Katu Arkonada – Acho que, hoje em dia, pelo menos na Bolívia, descolonização e Viver Bem são conceitos que estão intrinsecamente ligados. Na Bolívia e na América Latina em geral, é onde está se dando a luta contra as novas formas de colonialismo, o capitalismo colonial/moderno, como define Aníbal Quijano, além de persistirem as velhas estruturas do Estado colonial e racista.

E, se falamos dessa luta – que na Bolívia passou da resistência à tomada do poder –, temos que falar do movimento indígena. Hoje em dia, é um ator que não só resiste e luta para que se deem verdadeiros processos de descolonização, quando defende seu direito de existir na terra que lhe viu nascer; quando defende a Mãe Terra contra a exploração dos recursos naturais; ou quando luta contra a sociedade racista; mas que, além disso, passa a propor formas alternativas de vida, por uma verdadeira descolonização do poder e do saber, e por uma desmercantilização da vida.

E é aí em que o Viver Bem ganha uma transcendência histórica. Mas devemos estar alerta, porque precisamente há um grande risco – depois de institucionalizar o termo Viver Bem na Constituição – de esvaziá-lo de conteúdo, de que acabe sendo algo sobre o qual os intelectuais escrevem e ao qual, como conceito de moda, as ONGs dedicam fóruns. E, como diz Boaventura de Sousa Santos, um dia nos daremos conta de que o Banco Mundial dedicou-lhe um relatório e, a partir daí, teremos perdido todo o potencial que tem como novo paradigma para o qual caminhamos.

A Bolívia, nesse contexto histórico, tem um grande protagonismo. Depois da Revolução Cubana de 1959 e do processo bolivariano iniciado na Venezuela, as lutas iniciadas na Bolívia pelos movimentos sociais, com referentes como a Guerra da Água no ano 2000, a do gás em 2003 ou a recente Cúpula de Tiquipaya para enfrentar a crise climática, além de iniciativas governamentais, como a recente criação do Vice-Ministério de Planejamento Estratégico do Estado, que tem a missão de criar indicadores de Viver Bem que possam ser aplicados nos grandes projetos de desenvolvimento, indicam-nos o caminho. A Bolívia e o movimento indígena originário em geral têm muito a contribuir e a complementar o projeto de socialismo do século XXI para o qual Cuba, Venezuela e Equador caminham. E aí novamente torna-se imprescindível buscar formas híbridas, que resgatem o melhor de cada projeto de vida, para construir esse novo e desejado paradigma de civilização.

IHU On-Line – Falando sobre a nova Constituição, que direitos e deveres o Estado assume frente à natureza?

Katu Arkonada – Nesse sentido, a Constituição do Equador é mais avançada em termos políticos, na medida em que consagra os Direitos da Natureza, embora os recentes protestos do movimento indígena e dos povos originários contra a Lei da Água nos fazem temer que isso virou apenas um conceito discursivo.

Na Bolívia, a nova Constituição Política do Estado fala várias vezes de harmonia com a Natureza quando se fala das Relações Internacionais, da extração de recursos naturais ou do direito à terra no território indígenas originários campesinos. No entanto, as contradições continuam acontecendo – o que torna muito difícil encontrar um equilíbrio entre desenvolvimento e industrialização de um país em que 500 anos de colonialismo e de saque, com o leilão das políticas econômicas impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional nos anos 1980 – deixaram uma situação muito precária e, ao mesmo tempo, a busca de uma alternativa, de um desenvolvimento harmônico que saia do esquema tradicional, ocidental e moderno de exploração dos recursos naturais.

IHU On-Line – A partir do conceito de Pachamama, como o Bem-Viver entende a relação entre o ser humano e a natureza?

Katu Arkonada – Viver Bem é sair da dicotomia entre ser humano e natureza. É despertar para uma consciência de que somos filhos da Mãe Terra, da Pachamama, de Ama Lurra como dizemos em euskera, meu idioma, e tomar consciência de que somos parte dela, de que dela viemos e com ela nos complementamos.

Nesse sentido, é interessante a ideia do nosso presidente, Evo Morales, de criar uma lei dos Direitos da Mãe Terra, da Pachamama. E, mais uma vez, voltamos a ver uma forma híbrida entre um conceito ocidental e moderno, como é o caso dos direitos, e um oriental e milenar. Direitos da Pachamama é uma metáfora do que a Bolívia é hoje, um laboratório de conceitos, uma aprendizagem contínua e uma confrontação entre diferentes formas de pensar, na busca de um novo paradigma, de uma nova forma de vida.

IHU On-Line – Que desafios o paradigma do Bem-Viver apresenta à atual cultura capitalista, ocidental e moderna de desenvolvimento e progresso?

Katu Arkonada – O que é desenvolvimento? O que é progresso? Aqui na Bolívia, as ONGs têm nos ensinado que o desenvolvimento é medido com uma série de indicadores, que o motor do desenvolvimento é o avanço tecnológico, colocando as pessoas em posição de supremacia frente à natureza e em um vale-tudo para alcançar a sociedade do bem-estar, esse modelo exportado da Europa e que também se refere aos grandes interesses econômicos, que nos impuseram o capitalismo depredatório como modelo sócio-econômico. Progresso são os índices do PIB e da renda per capita mais elevados, mesmo que seja às custas da uma deterioração social e ambiental, como a que nos levou a essa crise de civilização que sofremos.

Nessa conjuntura, o paradigma do Viver Bem ensina-nos não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos. Ele precisa ser um marco na educação. Precisamos criar uma ética de Viver Bem e reconstruir um pensamento e uma forma de vida mais comunitária, com outras formas de repensar as relações interpessoais e a economia, um equilíbrio entre a cultura e a Mãe Terra, em que a complementaridade ou a reciprocidade sejam as duas faces de uma mesma moeda.

IHU On-Line – Em termos econômicos, como o Bem-Viver nos ajuda a repensar a produção e a produtividade?

Katu Arkonada – Aqui temos de ver como passar da teoria à prática: repensar e caminhar em direção a novos paradigmas e, no plano econômico, desenvolver a economia comunitária.

Novamente, temos que aprender muito com o mundo indígena, com o funcionamento do Ayllu, o sistema de organização tradicional, a comunidade, mas não entendida como um conjunto de indivíduos, mas sim como um todo complementar entre as pessoas, os animais, o ar ou a Mãe Terra. Assim, ao sairmos da concepção humanista e individualista, não é possível conceber o termo “recurso”, e, portanto, tudo é complementar, todo o ayllu contribui e recebe, de forma comunitária.

E se isso pode ser aplicado à microeconomia, mediante o ayni – que nada mais é do que essa reciprocidade, em que se dá sem esperar nada em troca, e também se recebe –, temos que ver como repensamos o Viver Bem em nível macroeconômico, onde o Estado tem que se converter em um ente redistribuidor da terra e da riqueza, e preservador dos recursos naturais. E o mesmo vale para as relações internacionais, em que temos intenção de levar isso a cabo, a complementaridade e a reciprocidade, na ALBA .

IHU On-Line – Você diz que “nos educaram e nos ensinaram a viver melhor, mas não a Bem-Viver”. Nesse sentido, Bem-Viver é o caminho para a Yvy marã ei (terra sem males), sonhada pelos Guarani?

Katu Arkonada – Para aqueles que cresceram e foram educados na Europa do capital, na modernidade ocidental, Viver Bem significa viver melhor, ter mais. No entanto, em toda sua polissemia, seja a concepção aimará, quéchua ou guarani de ivi maraei, que a nova Constituição Política do Estado boliviano também inclui, o Viver Bem se converte em uma esperança para a crise de vida que sofremos, em um novo paradigma para o qual é preciso caminhar.

Parece-me muito interessante que haja diversas aproximações ao termo e que continuemos tentando aterrissá-lo nas questões práticas, além dos discursos mais retóricos. Nesse sentido, se a partir da teoria, do confronto de ideias e de termos – inclusive, às vezes, gerando contradições – conseguimos avançar e nos aproximar um pouquinho mais desse novo paradigma, creio que debates como este ganham sentido.

Precisamos ouvir aqueles que estão caminhando há milhares de anos, aqueles que não veem o tempo como algo linear, mas como algo circular, em que o presente é contínuo, e o passado e o futuro são um só. Só assim, saindo da lógica ocidental, eurocêntrica, cristã e moderna, repensando a nós mesmos e aquilo que nos rodeia, poderemos começar uma verdadeira descolonização e uma aproximação ao Viver Bem.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/35571-descolonizacao-e-viver-bem-sao-conceitos-que-estao-intrinsecamente-ligados-entrevista-especial-com-katu-arkonada

Às Professoras e Professores de Lauro – Educadores do Brasil

            “Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeitos

e somente enquanto sujeitos, que o homem pode realmente conhecer.”

 Paulo Freire

 

Após um desenvolvimento extraordinário nos primeiros governos da Prefeita Moema Gramacho (2005/2012), a educação de Lauro foi submetida nos últimos anos a um intenso processo de degradação. Prédios depredados, quebra de equipamentos e móveis, ausência de processos e fluxos regulares de compras, ausência de definição de processos pedagógicos, falta de política institucional de formação continuada, ausência de envolvimento das famílias e da comunidade, ausência de informações confiáveis sobre a educação, quebra do processo de gestão democrática,  enfim, perdemos tudo o que nós, professores, sabemos que são dimensões capazes de ativar a dinâmica de  ensino-aprendizagem de forma sustentável num município.

Em meio a tudo isso, felizmente, encontramos um ponto muito forte, uma força única capaz de ser um importante ponto de partida para mudar o cenário da educação desse pedacinho do Brasil: os professores e professoras de Lauro. Nesses meses, aprendi a admirar profundamente a dedicação e competência de vocês, profissionais, que no dia a dia constroem a educação laurofreitense.

A Prefeita Moema Gramacho, demonstrando determinação em inaugurar um novo tempo na educação do nosso município e na relação com a categoria dos professores, tomou medidas que podem ser consideradas as mais avançadas dentre os novos gestores municipais brasileiros que assumiram as prefeituras no início de 2017. Dentre essas medidas podemos destacar: reajuste superior ao aumento do  piso nacional salarial dos professores para toda categoria; compromisso com as eleições diretas para gestores escolares; realização da seleção do REDA; criação da  Comissão Permanente, com o objetivo de sistematizar processos administrativos; redefinição de uma política de formação continuada para os professores; determinação de reforma dos prédios escolares e encaminhamento das aquisição de todo material e equipamentos necessários ao bom desenvolvimento das atividades escolares. Aliado a isso, e sob a liderança da nossa prefeita, estamos realizando ações que visam ativar as dimensões educativas dos diversos territórios de Lauro de Freitas.

É certo que esse primeiro ano tem sido desafiador, mas, não tenho dúvidas que estamos criando as condições para, cada vez mais, termos a comemorar nessa data. Com a ajuda de todos, e sob a liderança dos professores e professoras, não temos dúvidas de que Lauro de Freitas será cada vez mais uma cidade educadora.

A elevação da qualidade da educação de Lauro de Freitas não será um a terefa fácil e certamente precisamos muito de vocês, professoras e professores, nesse processo. Em qualquer situação, tenham certeza, que nunca esqueceremos dos ensinamentos do mestre Paulo Freire e sempre  trataremos vocês como profissionais maduros e autônomos e, por isso, sujeitos capazes de escrever uma nova história.

 

Com estima,

Paulo Gabriel Soledade Nacif

Secretário Municipal de Educação

 

 

O Título a Lula: A Sentença do Juiz e o Erro da Universidade

Paulo Gabriel Soledade Nacif

  “…nas scolas gerais do studo de lixboa…determjnando per o bacharel Ruy gonçalvez… o dicto doctor ouuese seu asento e quaesquer onrras no dicto studo por que ElRey nosso Senhor asi o auja por bem…”   

ata de 6 de novembro de 1512, da Universidade de Lisboa

A decisão do Juiz Evandro Reimão dos Reis, da 10ª Vara Cível da Justiça Federal na Bahia de suspender o ato administrativo que concedeu o Título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Lula entrará para a história como o mais grave atentado contra a autonomia universitária no território brasileiro nas primeiras décadas do século XXI. Isso certamente será debatido por muito tempo. Consultei estudiosos da instituição universitária de alguns países e tudo indica que aquela foi uma decisão sem precedentes nas democracias ocidentais.

O Juiz também determinou o deslocamento da Polícia Federal para a sede da universidade, com o objetivo de garantir o cumprimento de seu mandado e impedir a realização da solenidade de entrega do Título Honorífico ao seu destinatário. Considerando a possibilidade de que seu ato – essencialmente arbitrário – não fosse acatado, o magistrado lançou mão de medida coercitiva extrema, evocando a força para que ela estivesse “presente na data e local anunciados da entrega da honraria e, em caso de descumprimento desta decisão, adote as medidas cabíveis para sua observância”. Tal decisão não constrangeu apenas o Conselho Universitário da UFRB, mas a setores expressivos da sociedade brasileira de todo espectro ideológico.

Chama a atenção o fato de que o Magistrado fez tudo isso sem recorrer a uma prerrogativa muito utilizada na justiça: buscar informações sobre o processo junto à universidade primeiramente. Caso optasse por esse caminho, ele teria sido informado que o debate sobre a outorga do Título Honorífico ao ex-presidente Lula ocorre naquele Conselho desde 2007. Tivesse buscado informações sobre o que iria julgar, o faria tendo como norte de sua decisão uma sequência de fatos e elementos que autorizou a UFRB a exercer as prerrogativas da sua autonomia, ao conferir homenagens e honrarias a quem considerou merecedor delas, restando, vale enfatizar, sempre resguardados os limites dos seus procedimentos regimentais.

Tivesse interpelado a UFRB antes de decidir, o Juiz saberia que o então reitor (Presidente do Conselho Universitário da UFRB) ponderou à época do surgimento do assunto que a outorga do título Doutor Honoris Causa a Lula, na condição de Presidente da República, deveria ser encaminhada no futuro, pois o mais alto Signatário da Nação expressara em diversas ocasiões que não considerava adequada a possibilidade de ser homenageado por universidades brasileiras durante a vigência de seu mandato.

Seria importante que o Juiz realizasse o seu julgamento sabendo que a UFRB não é uma instituição que vive a instituir homenagens, pois, em doze anos de existência, apenas três vezes deliberou pela concessão do Título de Doutor Honoris Causa a alguém; que o conceito de Títulos Honoríficos da UFRB foi profundamente debatido pelos membros do Colendo Conselho Universitário e que esses senhores e senhoras possuem amplo domínio sobre o assunto, para muito além do senso comum; que para a outorga de tais honrarias a votação no Conselho Universitário é secreta, para evitar quaisquer pressões ou interferências sobre os Conselheiros.

O Magistrado poderia ainda ter tido acesso ao discurso do então Reitor da UFRB (Presidente do Conselho Universitário) na solenidade de outorga do primeiro Título de Doutor Honoris Causa a Dona Dalva do Samba:

“O Doutoramento Honoris Causa é uma prática de grande significado na vida acadêmica. De um lado o prestígio da universidade e o rigor da outorga enaltecem quem recebe e, por outro, a instituição também é enriquecida pelo mérito das personalidades, que, por meio do título, associam-se de forma permanente à sua comunidade acadêmica. Assim, mais que honrar o homenageado, este título deve ser concedido de forma que a Universidade se sinta honrada em concedê-lo.

Quero parabenizar o Centro de Artes Humanidades e Letras e o Conselho Universitário da UFRB por definirem com muita firmeza que estaríamos aqui hoje sem improvisações nem atalhos. Nesse sentido, agradeço sinceramente ao Conselho do Centro de Humanidades, Artes e Letras, por não abrir mão do sentido acadêmico dessa homenagem.

Aqui na UFRB as coisas não são perfeitas, temos muito a avançar. Mas temos como princípio sempre ir ao limite. Neste propósito, seguimos todos os formalismos, próprios do meio acadêmico, nessa homenagem a Doutora Dalva. Estamos aqui com toda dignidade que a UFRB e a nossa Doutora merecem.”

Enfim, uma simples consulta poderia ter evitado que ele considerasse que uma universidade, sempre tão digna no seu fazer acadêmico, poderia incorrer em “desvio de finalidade” quando, usando das prorrogativas de sua autonomia, definiu outorgar o Título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

O magistrado, mesmo numa decisão tão paradigmática, se absteve de considerar todas as dimensões presentes na Resolução do próprio Conselho Universitário da UFRB, que ele toma como base para sustentar, em grande parte, a sua decisão. Diz a sentença:

“[…] é perceptível que somente através de proposta justificada do Reitor ou do Conselho Diretor de Centro de Ensino da UFRB, os quais tem iniciativa privativa e exclusiva da proposição honorífica, segundo literal dicção da reproduzida norma administrativa plasmada no artigo 2º, inciso IV, da Resolução nº 006/2011, instaura-se o procedimento e pode ser concedido, após sufrágio qualificado de mais de dois terços dos membros do Conselho Universitário da universidade-ré, o título de doutor honoris causa.

Porém, a honraria foi conferida ao réu Luiz Inácio Lula da Silva por provocação do próprio Conselho Universitário, o qual também apreciou a proposição e a aprovou em hostil violação da regra administrativa antes transcrita, o que certamente também aparenta ladear a moralidade administrativa.”

Na verdade, hostil à Resolução foi a interpretação do Juiz. Seguindo a leitura da Resolução para além do Artigo 2º, encontraremos o Artigo 9º que, explicitamente, permite, em casos de competência do Conselho, a proposição de outorga do título, feita tanto pelo Presidente (Reitor) como por iniciativa de cinco membros do Conselho Universitário.  Ora, a outorga do Título de Doutor Honoris Causa é competência específica do Conselho Universitário, logo a aplicação do Artigo 9º também é direta e pertinente.  Inclusive, vale registrar adicionalmente, que o Reitor recebeu, acatou a proposição do Título Honorífico e pautou tempestivamente, enquanto Presidente do Conselho, a análise da matéria, demonstrando em todas as ocasiões claro acolhimento do ato quanto a seus procedimentos e se colocando, na prática, ele mesmo, como um proponente.

Vale lembrar que a nossa Constituição Federal de 1988 consagrou, pela primeira vez, o princípio da autonomia universitária plena – ela está definida no Artigo 207 da Carta Magna. Evidentemente que essa autonomia não faz da universidade um mini-estado dentro do País, mas deve ser percebida como um instrumento que visa a condução da universidade ao atendimento dos fins aos quais é destinada, não estando a instituição dispensada do cumprimento das normas mais gerais de probidade da administração pública. No entanto, registre-se que isso está muito longe de significar que a onipotência tácita dos Poderes permite tratar as universidades como uma autarquia qualquer.

A difícil relação do Conhecimento com os Poderes instituídos fez com que a luta pela conquista e manutenção da autonomia universitária tenha acompanhado a história dessa instituição ao longo dos séculos e em todos os confins da terra. A autonomia tem por objetivo proteger, ontem e hoje, a instituição universitária de ações do Rei, seja aquela que ocorreu em Lisboa em 1512 e está retratada na epígrafe desse texto, seja da decisão do Juiz em relação à UFRB em 2017. Na história das decisões sobre outorga de títulos, sempre há registro de tensões, ameaças, prisões, enforcamentos, guilhotinas e fogueiras. Nas democracias contemporâneas, essa tem sido uma prerrogativa inquestionável da universidade e não do Rei.  Em nenhuma época foi fácil para o Rei abrir mão desse poder, mas, ressalte-se, é a autonomia que permite que a universidade contribua tão decisivamente para o desenvolvimento das sociedades.

Na sua decisão, o Juiz expressa que o encaminhamento pelo Conselho Universitário da UFRB parece configurar desvio de finalidade revelador de ofensa à moralidade administrativa pois outorgado às vésperas de o laureado empreender caravana pelo Nordeste afora no denominado projeto de natureza político-partidária “Brasil em Movimento”.  Ele não levou em consideração que o Ato da UFRB em questão pudesse ser o simples reconhecimento da ampliação do acesso ao nível superior de populações do interior do País, realizado durante o governo do homenageado.

E, objetivamente, essa inegável judicialização da política não seria um desserviço à democracia brasileira? O Conselho Universitário da UFRB dependeria do tutoramento de um juiz ou de um vereador para fazer uso das prerrogativas que lhe conferem a autonomia prevista pela CF/88? Considerando o encaminhamento autônomo de cinco dos seus membros, os seus pares do Conselho Universitário, ponderaram as perdas e ganhos e tomaram uma decisão soberanamente. O encaminhamento contrário – a não aprovação do título também geraria repercussões. Num ou noutro caso (aprovação ou reprovação da proposição de honraria) a instituição jamais se furtou a arcar com as consequências e buscar explicar à sociedade os seus atos.

A democracia tem seus pesos e contrapesos e essa decisão da Justiça causou um estrago muito maior à democracia e ao tecido estatal brasileiro do que quaisquer consequências advindas da Cerimônia proibida. É como imaginar que para matar um inseto fosse necessário usar uma bomba atômica – a imposição da força sobre o legítimo exercício do direito produz efeitos ”radioativos” por muitos anos. A delicadeza do jogo democrático precisa ser aprendida pelos juízes do Brasil, pois a inobservância dela resulta sempre em fraturas de difícil reparação nas estruturas da própria democracia.

Adicionalmente, devemos explicitar que esse episódio deixa evidentes questões que a universidade brasileira insiste em não enfrentar. É necessário que se considere que a defesa da autonomia universitária deve significar o cultivo cotidiano desse princípio nas próprias instituições universitárias. Afinal, que oportunidade são dadas aos nossos estudantes para que eles vivenciem e estabeleçam esse princípio como algo a ser respeitado pelo resto das suas vidas? Se um egresso das universidades não considera a autonomia universitária, valor cultural tão caro para a civilização ocidental, precisamos nos perguntar se a universidade proporcionou a ele o desenvolvimento desse respeito.

É difícil cobrar que a sociedade entenda e defenda a autonomia universitária se não cultivamos valores mais amplos nas nossas instituições. Por isso, é sempre bom lembrar num momento como este de que o compromisso da Universidade deve ir além de preparar o que William Zinsser chamou de “bárbaros altamente qualificados”. Nosso compromisso é o de contribuir para a formação integral do ser humano. Os atuais cursos de graduação são orientados prioritariamente para a formação profissional, as diretrizes curriculares dos nossos cursos expressam uma intenção de desenvolver uma série de competências, habilidades e qualidades gerais, mas elas raramente são desenvolvidas de forma sistemática em currículos típicos.

A tendência dentro das universidades tem sido de privilegiar os conteúdos específicos – necessários, mas não suficientes – em detrimento da formação estruturante que o desenvolvimento dessas competências, habilidades e qualidades proporcionam. A própria formação geral nos nossos cursos tende a ser preterida também pelo privilégio aos conteúdos específicos. Como destacou Anísio Teixeira, de um modo geral, as ações das nossas universidades ainda são tímidas e pouco sistematizadas no sentido de alargar, na sua comunidade, a cultura geral recebida no nível secundário.

No dia 18 de agosto último, estive presente quando o ex-presidente Lula chegou à UFRB para agradecer a outorga do título, sem poder recebê-lo naquele momento. Era visível o constrangimento do Conselho Universitário e, mesmo de alguns membros da comunidade acadêmica que se colocaram contrários à outorga do título, mas que estavam ali em solidariedade à UFRB pela agressão sofrida. Naquele momento, lembrei-me de um episódio que aconteceu na Universidade de Salamanca, Espanha, em 12 de outubro de 1936, durante o Festival da Raça Espanhola, com a presença de nacionalistas, da mulher do general Francisco Franco e do general Millán Astray, fundador da Legião Estrangeira. Encontramos facilmente na rede mundial de computadores a descrição da cena, com pequenas variações.

Após ataques ao nacionalismo basco pelo professor Francisco Maldonado que o descreveu como “câncer da nação”, que precisava ser curado com o bisturi do fascismo, alguém soltou o grito de guerra da Legião Estrangeira: “!Viva la muerte!” Então o General Millan Astray deu o mesmo grito. O filósofo basco Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, levantou-se e, com sua voz baixa, rebateu:

“Todos vocês esperam as minhas palavras. Vocês me conhecem e sabem que sou incapaz de ficar em silêncio. Às vezes o silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como concordância. Quero comentar o discurso, se é que se pode chamá-lo assim, do professor Maldonado. Vamos deixar de lado a afronta pessoal implícita na explosão súbita de vitupérios contra os bascos e catalães. Eu mesmo, claro, nasci em Bilbao. O bispo, quer queira ou não, é catalão, de Barcelona. Bem agora ouvi um grito necrófilo e sem sentido: ‘Viva a morte!’ E eu, que passei a vida criando paradoxos, devo dizer-lhes, com autoridade de especialista, que este paradoxo estranhíssimo me é repulsivo. O general Milan-Astray é um inválido. Não é necessário dizer isso com um acento pejorativo pois é, de fato, um inválido de guerra. Cervantes também o foi. Mas extremos não servem como norma. Desgraçadamente na Espanha atual há demasiados mutilados. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar as normas da psicologia das massas. De um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem viril e completo apesar de suas mutilações, de um inválido que não tenha essa superioridade de espírito, é de se esperar que encontre um terrível alívio vendo multiplicar-se os mutilados ao seu redor. O general Millán-Astray deseja criar uma nova Espanha, criação negativa, sem dúvida, posto que a sua própria imagem.”

Irritado, o general gritou: “Muera la inteligência! Viva la muerte!” Falangistas sacaram pistolas e o guarda-costas de Millán Astray apontou sua submetralhadora para a cabeça de Unamuno. Mesmo assim, o filósofo reagiu: “Este é o templo do intelecto e sou eu o sumo sacerdote. É o senhor que profana este recinto sagrado. O senhor vencerá, porque tem força bruta mais que suficiente. Mas não convencerá. Pois, para convencer, precisará do que lhe falta: a razão e o direito em sua luta. Considero inútil exortar o senhor a pensar na Espanha”.

Os falangistas queriam linchá-lo, mas a presença da mulher de Franco conteve os agressores. Franco disse que o Filósofo deveria ter sido fuzilado. Isso não foi feito por causa da fama internacional deste e da reação causada no exterior pelo assassinato de Lorca. Mas Unamuno morreu seis semanas depois, deprimido e amaldiçoado como ‘vermelho’ e traidor por aqueles que considerava seus amigos.

Sabemos que Francisco Franco comandou a Espanha com punho de ferro por quase quarenta anos, se tornando um dos mais notórios ditadores da Europa ocidental. No entanto, após ele, a democracia foi conquistada e hoje o povo espanhol trata princípios como a democracia e a autonomia universitária como valores fundamentais daquela sociedade.